Tipologias intelectuais

F. Pereira
8 min readMay 16, 2020

Como sabemos que sabemos? Essa pergunta é chamada de dúvida cartesiana. A filosofia moderna é toda marcada por essa crise de insegurança com respeito à razão humana. Se os antigos e os medievais eram racionalistas otimistas, ou seja, acreditavam na capacidade natural da razão humana de conhecer as coisas, os modernos são racionalistas pessimistas. Começam por duvidar das próprias dúvidas, enquanto os antigos e os medievais, no máximo, duvidavam das suas certezas. Digo racionalistas pessimistas porque os filósofos modernos além de duvidarem da própria razão, ironicamente, buscam um critério de validade racional para o nosso conhecimento através da razão mesma. É como um andar em círculos, uma tentativa de pôr-se atrás das próprias costas. Essa crise de confiança na razão feita pela própria razão leva a visões de mundo neuróticas que se sucedem umas às outras e não chegam a lugar algum. É inútil tentar fixar racionalmente um critério racional através do qual a razão pode julgar a si mesma, tal como fez Kant em sua Crítica da Razão Pura. É como se disséssemos que o árbitro de futebol é o tira-teima de si mesmo, como se ele fosse capaz de, ao mesmo tempo, marcar as faltas e rever o lance. A nossa razão é falível, e por isso mesmo é inútil tentar construir um critério de infalibilidade através do qual nossa própria razão falível pudesse julgar a si mesma. Como, pela nossa própria falibilidade, poderíamos construir nossa infalibilidade? É obviamente um empreendimento inócuo porque impossível. Sabedores dessa impossibilidade, muitos filósofos caíram em formas diversas de ceticismo ou de relativismo, que é a moda intelectual no Mundo Ocidental nos últimos dois séculos. Não podemos conhecer a verdade de modo infalível, logo não podemos conhecer, diz o cético. Não podemos conhecer a verdade de modo infalível, logo não há verdade, mas apenas opiniões e interesses, diz o relativista. Ora se nega a existência da verdade, ora se nega a existência do conhecimento racional dela. Ora, se nega as duas coisas, como o fazem os niilistas. Porém, há formas sofisticadas de relativismo, ceticismo e niilismo. Na maior parte das vezes o homem contemporâneo (ou pós-moderno se preferirem), vive transitando de um estado mental para o outro. Geralmente começa-se com o ceticismo. Começa-se afirmando que não podemos conhecer a natureza das coisas, o homem, Deus, etc. Porém, a nossa sede por conhecimento não pode ser satisfeita pelo ceticismo. Ainda que você diga que não conheça coisa alguma na prática agirá como se conhecesse. Dirá que conhece de cor a escalação do Palmeiras, que seus pais são verdadeiramente seus pais, que salvo melhor juízo vivemos no ano de 2016 [1], que o sol nascerá amanhã e que nas últimas semanas fez bastante frio em São Paulo, etc. Os céticos podem objetar que todos esses exemplos são truísmos, afinal ninguém duvida do que está habituado a acreditar. Além do mais, nada nos garante que tais crenças são verdadeiras, pois posso me equivocar com relação a qualquer uma delas. O detalhe é que podemos contra-objetar ao cético perguntando: Como você sabe que não sabe de coisa alguma? E como você sabe que se equivocou num caso x ou y? A afirmação da ignorância já é uma forma de conhecimento e o erro dos céticos é tomar ao pé da letra a irônica frase socrática “Só sei que nada sei”. Quando o famoso filósofo grego proferiu aquela afirmação seu objetivo era nos estimular à busca do conhecimento e não negar de antemão tal busca. O ceticismo só é útil em âmbito local, ou seja, só é aplicável a alguns assuntos específicos, dadas determinadas circunstâncias. Se, por exemplo, não temos evidência suficiente para comprovar a culpa de alguém que está sendo processado criminalmente, aplica-se a regra processual do “in dubio pro reu”, na dúvida absolve-se a pessoa que está sendo acusada de crime. Boa parte das pessoas não defende uma aplicação generalizada do ceticismo, pois seria extremamente inútil duvidar o tempo inteiro de tudo. A dúvida cartesiana referida no início do texto também é um exemplo de ceticismo e possui os mesmos inconvenientes já apontados. Porém, não é em questões relacionadas ao conhecimento e a verdade que o ceticismo se mostra de maneira mais contundente. Talvez a forma mais comum de ceticismo no mundo atual se dá no âmbito dos relacionamentos interpessoais ou morais. É muito comum casais apaixonados duvidarem da fidelidade do outro. Não há relacionamento quando há falta de confiança no parceiro(a), ou ciúmes, que é o ceticismo do coração apaixonado. Será que ele(a) realmente está se doando ao relacionamento? Como eu sei que fulano(a) não está me traindo? E começa-se a enorme e fútil empresa de se raciocinar em círculos, de querer “provas infalíveis” de fidelidade ao invés de simplesmente confiar no outro.

Como o ceticismo não pode servir de modelo para a vida, passa-se a outro estado mental, o relativismo. Começa-se a acreditar em algumas coisas provavelmente verdadeiras, mas não com convicção, afinal tudo muda, o que é verdade pra você pode não ser verdade pra mim etc. O relativista vive de modas intelectuais, das unanimidades de opinião, ainda que estas sejam falsas. Quando se comprovar a falsidade da opinião que o relativista até então aceitava, nos responderá que tudo é relativo, que agora é hora de se adotar um novo ponto de vista, pois os tempos mudaram. O relativista aplica esse mesmo raciocínio principalmente a questões morais. O certo e o errado são divergentes entre você e eu, o certo numa época é errado em outra, devemos viver cada qual com “seus” valores e “suas” opiniões particulares, de preferência em conformidade com a moral da nossa época. Porém, se praticarem algum crime brutal e completamente imoral contra alguém, o relativista imediatamente dirá que é uma afronta à dignidade humana, um ideal absoluto que deve ser respeitado por todos, não importa a época, a posição social, a ideologia política, etc. Todos as coisas são relativas exceto a frase do relativista de que tudo é relativo. O relativista é a incrível exceção de si mesmo. Pior, a exceção de uma regra que não existe. Não existe outro absoluto além do absoluto do relativista. Não existem absolutos, mesmo assim a afirmação de que “não existem absolutos” existe absolutamente… A consequência do relativismo é viver a vida inteira das modas intelectuais do momento, como já se disse, porém, pode ocorrer um fenômeno interessante. Depois de passar boa parte da vida se frustrando sobre o que é certo e errado, verdadeiro e falso, o relativista se cansa de ser arremessado de um lado para o outro sem ir a lugar algum. Enjoa dos boatos da semana que vem pois percebe que eles são fundamentalmente os mesmos da semana passada. Percebe que as novas opiniões, ideias ou valores são reedições pioradas das versões antigas. São cópias baratas de ideias que no passado pareciam originais em si mesmas, quando na verdade a única originalidade era o fato do relativista tê-las ouvido pela primeira vez. Não era a ideia que era nova, o relativista é que estava na puberdade do saber e achou que estava vivendo em uma época de revolução histórica, de crises paradigmáticas, do surgimento de um Novo Mundo, etc. O relativista atribuiu às coisas uma característica sua, atitude típica de todo adolescente imaturo que não enxerga a natureza das coisas, só enxerga a si mesmo nelas. Só que o mundo não é novo, novas são as nossas formas de percebê-lo e experimentá-lo. Novas são as nossas maneiras de dizer as mesmas coisas de sempre, de ensinar a mesma Verdade Eterna. A única coisa de original no mundo é o Pecado Original e a única coisa nova são as Boas Novas. Só que o relativista nega a nossa Queda e a nossa Redenção, acha que essas ideias foram criadas por sociedades do passado e não tem relevância mais para os dias atuais. Cansado de um trânsito sem fim de uma moda intelectual à outra, o relativista não só nega a Verdade, como também as “suas” próprias verdades, posto que se mostraram falsas diversas vezes. Dá mais um salto, dessa vez para o abismo: O niilismo.

Não há a Verdade, nem tampouco verdades, diz o niilista. A existência é um absurdo, um nada sem sentido, sem propósito. Viver é cair no abismo da existência. É inútil argumentar com um niilista, pois ele renuncia de antemão quaisquer tentativas de conhecimento da Verdade ou de verdades. É um suicida intelectual, um desesperado filosófico. O desespero, a angústia, o vazio de sentido, a paixão pela desgraça, a autocomiseração é típico do niilista. Como Judas, o niilista trai a Esperança da humanidade e se precipita para a morte. Vive para morrer, mas não morrer por amor como o Filho do Homem, mas morrer de tédio, de desespero, aniquila-se a si mesmo porque não conhece o valor de uma vida. Para o niilista, a vida em si não tem valor e não vale a pena ser vivida, nada mais óbvio do que eliminá-la. A princípio algumas pessoas dirão que não existem muitos niilistas no mundo, afinal é uma forma de pensamento autodestrutiva. Porém, essa forma de pensar se tornou popularíssima nas faculdades de filosofia, principalmente devido a influência de Nietzsche. Na verdade, o niilismo não é defendido de maneira sistemática como forma de pensamento e de vida, pois o niilismo é a negação da vida e do pensamento. As formas mais comuns de niilismo se dão nos hábitos dos cidadãos de grandes metrópoles que passam suas vidas morrendo de tédio, depressão, estresse, ataques de pânico e outras doenças de cunho psicológico, devidos à rotina cruel e fantasmagórica a que estão submetidos. Vive-se uma vida de morte, vive-se a morte do sentido da própria vida, pois somos forçados a viver uma rotina desgastante e neurótica, trabalhando com o que não gostamos para obtermos um dinheiro que será gasto com o que não precisamos. Não é necessário chegar até a tumba, os trabalhadores urbanos já perderam suas vidas trabalhando em vão, são zumbis laborais. Poderíamos chamar tal forma de vida de niilismo social, e as doenças psicológicas por ele causadas de niilismo psicológico.

Porém, o niilismo não pode ser vivido e pensado de maneira sistemática e deliberada, do contrário acabaríamos no manicômio. Para ser mais exato, ao contrário do ceticismo e do relativismo, o niilismo não é uma doença, é uma morte trágica, um suicídio. Boa parte de nós temos “momentos” de suicídio existencial típicos do niilista, entretanto, lembramos que temos contas para pagar no dia seguinte. Levantamos corajosamente para mais um dia de trabalho. Como bons céticos duvidamos das manchetes dos jornais no café da manhã e dizemos que o país não tem solução, que todo mundo em Brasília é corrupto, etc. Mesmo assim vamos trabalhar, duvidamos do Brasil mas não duvidamos de que haverá dinheiro (pouco é verdade) na nossa conta ao final do mês. Na hora do almoço vemos a notícia de que algum político foi preso e adotamos a moda intelectual do momento de achar que talvez, não é certeza, tudo depende e é relativo, mas com certeza a Lava-Jato é o maior patrimônio e esperança do país, afinal estamos conseguindo colocar os corruptos na cadeia. No final do dia ficamos sabendo que o Estado do Rio de Janeiro decretou estado de calamidade pública e precisará se servir de empréstimos públicos sem a aprovação da Assembleia Legislativa. No início do ano também desabou uma ponte que foi feita para as Olimpíadas. No mesmo RJ uma menina foi estuprada há semanas atrás por vários homens. É o fim do mundo, a vida não faz sentido, a existência é um absurdo, Deus está morto ou não vê o que acontece no mundo, desisto.

É mais ou menos essa a rotina da vida intelectual do Homem no século XXI. Passa-se de um estado mental a outro quase que inconscientemente. Há algumas variações. Alguns ficam saltando do ceticismo para o relativismo e vice-versa. Outros do relativismo para o niilismo, ou deste para o ceticismo. Em todos os casos nunca se chega à solução alguma sobre as coisas. Passa-se de uma paranoia para outra, mas nunca se chega à Verdade sobre as coisas. Prefere-se negar a existência Dela, negar nossa capacidade de conhecê-La, ou desistir de pensar e de viver. Se quisermos ter algum futuro precisamos abandonar as desrazões do nosso tempo, as neuroses do ceticismo, do relativismo e do niilismo e buscarmos a Verdade.

[1] Este texto foi escrito há quatro anos atrás. Curiosamente o tema continua atual.

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