Outliers

F. Pereira
7 min readJan 31, 2021

O popular livro de Gladwell chamado “Outliers” procura fornecer as razões do porquê alguns indivíduos são extraordinariamente bem-sucedidos e outros nem tanto. O autor defende uma tese controversa segunda a qual muitas pessoas que consideramos bem-sucedidas não chegaram a seus respectivos patamares de sucesso sem boas doses de oportunidade e sorte que não derivavam do esforço pessoal dos mesmos. Para Gladwell, o sucesso é consequência de basicamente duas variáveis fundamentais: cerca de 10 mil horas de prática intensa mais oportunidades sociais e/ou legados culturais que colocam alguns indivíduos em ligeira vantagem em relação aos demais. Segundo o autor do livro, quando algum indivíduo possui uma ligeira vantagem física ou recebe uma oportunidade de praticar uma determinada atividade por um tempo muito superior aos demais, é natural que o mesmo se destaque bastante e posteriormente venha a ser reconhecido como a grande referência na sua respectiva área de atuação. Neste sentido, o fundamental para o sucesso, portanto, não seria a força de vontade do indivíduo e sim as oportunidades que ele recebeu para poder praticar uma determinada atividade por um tempo relativamente elevado de horas (idealmente 10 mil), o que acabou por conferir uma ligeira vantagem inicial em relação aos demais e, consequentemente, o colocará sempre à frente dos outros no longo prazo. O argumento de Gladwell é que muitas pessoas que consideramos bem-sucedidas na verdade receberam uma pequena vantagem no início, seja porque nasceram numa classe social privilegiada, num mês específico, num ano ou época do mundo relativamente rica em oportunidades e assim sucessivamente e fora justamente essa vantagem inicial que garantiu o sucesso futuro do indivíduo e não sua “garra”, “força de vontade” ou paixão.

O argumento de Gladwell possui várias limitações que precisam e serão atacadas a seguir. As principais afirmações feitas por ele são: “As pessoas não se tornam bem-sucedidas sem ajuda. A sua origem importa. Elas são produtos [sic] de ambientes e lugares específicos”.

Cada frase pode ser analisada separadamente, pois o fato de as pessoas precisarem de ajuda para se tornarem bem-sucedidas não significa que sejam meros “produtos de ambientes e lugares específicos”, pois nesse caso virtualmente nenhum indivíduo se tornaria bem-sucedido por mérito próprio e sim em razão do ambiente ou lugar onde nasceu e cresceu. Todos seriam como que vítimas de um determinismo geográfico. Contudo, sabemos que isto não é verdade e por várias razões. Como ficaria o caso, por exemplo, dos indivíduos que receberam ajuda e não aproveitaram? E daqueles que cresceram e viveram no mesmo ambiente, mas não tiveram o mesmo êxito na vida? Mencionar a origem do indivíduo bem-sucedido e algumas circunstâncias particulares da sua educação é insuficiente para invalidar o seu mérito pessoal, na melhor das hipóteses o argumento mostra apenas que fatores externos influem no sucesso individual, mas o autor é completamente mal sucedido em demonstrar que tais fatores são necessários e suficientes, ou seja, que a iniciativa pessoal é secundária ou totalmente irrelevante. A única coisa que o autor faz é recontar as histórias de sucesso sob o prisma das oportunidades, favorecimentos ou ocasiões fortuitas que foram aproveitadas (fator determinante) pelos indivíduos bem sucedidos, mas ele não considera a obviedade de que se essas pessoas “sortudas” não tivessem aproveitado as oportunidades ao longo do caminho, seus resultados seriam igualmente medíocres como os da maioria. Portanto não são as oportunidades e os fatores externos que determinam nosso sucesso e sim o que fazemos em relação a tais oportunidades e fatores externos. É basicamente nisto que consiste o mérito pessoal: a capacidade de fazer uso de oportunidades ou fatores externos a nosso favor. Outros estudantes além de Bill Joy tiveram a oportunidade de praticar programação durante horas na universidade, mas apenas ele ficava virando a noite programando. Sorte do Bill por que o MIT instalou uma das suas unidades mais avançadas próximo de onde ele morava ou mérito dele de aproveitar esse fato a seu favor para treinar programação? Milhões de norte-americanos nasceram na década de 1830 nos EUA, mas por que apenas Rockfeller e J.P. Morgan ficaram bilionários após a Guerra Civil? Por que só eles aproveitaram “a década milagrosa”? Outros norte-americanos também nasceram na mesma época milagrosa, mas apenas alguns se tornaram bem-sucedidos, logo, a correlação indicada pelo autor é espúria e sem qualquer relação causal, chegando a ser pueril ignorar algo tão básico.

Um outro exemplo é fornecido pela história do advogado Joe Flom, em que o autor argumenta que quando novas áreas do direito “subitamente” se tornaram cruciais o renomado advogado norte-americano, descendente de judeus, já estava preparado. Segundo o autor, o mercado jurídico das aquisições hostis de empresas por outras era desprezado pelos grandes escritórios de advocacia, os quais preferiam efetuar acordos brandos ao invés de ingressar em longas batalhas judiciais. Contudo, a partir da década de 70 iniciou-se uma onda de aquisições de grandes empresas por outras na tentativa de expandir capital e, portanto, as megaempresas necessitavam de advogados com o perfil combativo de Flom e com uma larga experiência em negociações conflituosas e difíceis, algo incomum para os advogados de então. O autor explica que a ascendência judaica de Flom, bem como o fato de ter sido rejeitado pelos grandes escritórios de advocacia foram determinantes para o seu sucesso. Mas essa descrição fornecida por Gladwell é enganosa, pois seria mais apropriado afirmar que o renomado advogado enxergou a possibilidade de explorar um mercado escasso e aproveitou esta oportunidade. Ele poderia ter fracassado, afinal, nada garantia que o mercado jurídico iria revolucionar radicalmente e que os acordos hostis, frutos de grandes batalhas de megacorporações, se tornariam a tendência dominante no futuro. O ponto a ressaltar é que vários outros advogados de origem judia, que nasceram na mesma época de Flom não tiveram o mesmo sucesso que ele, ou seja, se as condições eram as mesmas, por que ele se destacou em relação a outros que nasceram em situações semelhantes às dele? A explicação do autor é insuficiente, pois é evidente que se Flom não tivesse desenvolvido as habilidades necessárias para um mercado jurídico em ascensão, jamais teria se tornado quem se tornou, portanto, o fator determinante para o seu sucesso fora o seu mérito pessoal de detectar, se preparar e aproveitar oportunidades surgidas e não o mero fato de ter a ascendência judaica ou nascido numa década de vale demográfico.

Apenas uma parte do argumento de Gladwell é plausível mas não pelos motivos que ele alega: a época histórica em que a pessoa nasce pode ser uma fonte para o sucesso ou para o desastre. Épocas de guerra, recessão ou epidemias (v.g. coronavírus) normalmente são difíceis de empreender e ser bem-sucedido, porém, se a pessoa nascer numa época de “vale demográfico”, ela terá menos concorrência e mais facilidade para empreender e se tornar bem sucedida, simplesmente porque as oportunidades são maiores. Mas ressalte-se que o fato de as pessoas terem mais oportunidades não significa que todas irão prosperar da mesma forma, significa que o bem estar geral da sociedade será mais facilmente atingido por haver mais ofertas a todos. Até aquelas pessoas que não conquistarem carreiras brilhantes muito provavelmente conseguirão um emprego estável e digno por um certo tempo, mas isso não significa que seus contemporâneos que ficaram bilionários são mais sortudos que elas, pelo contrário, apenas souberam perceber e aproveitar melhor as oportunidades surgidas na sua geração. Mais uma vez isto não invalida o mérito pessoal dos Outliers. O que se deve discutir então é se é possível organizarmos nossas sociedades para que cada nova geração tenha os mesmos benefícios daquelas que nascem em “vales demográficos”. Uma outra questão relacionada é: deveríamos buscar um método de planejamento ou de planificação da sociedade, uma espécie de controle demográfico para supostamente criar mais oportunidades de sucesso para as gerações vindouras? Isto seria desejável ou estaríamos recuando a uma nova forma de totalitarismo?

Deixando a parte crítica de lado, concordo plenamente com a seguinte frase do autor: “Não é o quanto ganhamos que nos deixa satisfeitos, mas o fato de estarmos realizando uma atividade a qual atribuímos importância”. Pg. 135.

De igual modo concordo com os três itens identificados por Gladwell para um trabalho ser considerado significativo: Autonomia, complexidade e relação esforço e ganho, o que também pode ser traduzido pela expressão “O trabalho árduo só representa uma sentença de prisão quando não é significativo”. Em outras palavras, não é apenas o esforço árduo que conta, mas a agregação de sentido dada ao trabalho que lhe confere um significado recompensador. As pessoas não querem apenas trabalhar, querem viver um vida em que seus esforços sejam de algum modo recompensados e façam sentido.

É interessante notar como Gladwell reconhece que o trabalho significativo é essencial na determinação de sucesso de um indivíduo, mas curiosamente ele não percebe que todo e qualquer trabalho, significativo ou não, para ser bem executado depende de esforço individual, neste sentido, pouco importam os legados culturais que o indivíduo recebeu se ele não sabe fazer uso disto. Aliás, o autor parece ignorar completamente o conceito de chance desperdiçada que frequentemente é causa de insucesso de muitos profissionais, sendo incorreto atribuir tudo aos legados culturais, os quais não produzem efeitos benéficos per se, mas exigem, para serem eficazes, ser assimilados e corretamente empregados pelo indivíduo.

Por fim, é necessário ressaltar que o autor ignora a distinção filosófica entre causas remotas e causas próximas. Os fatores externos para o sucesso segundo o autor são a cultura, o histórico familiar e a geração em que nasceu, porém tais fatores são causas remotas, isto é, não causam ou geram por si mesmas o sucesso de ninguém, pois é necessário além disto, agregar esforço pessoal que é a causa próxima e propriamente dita do sucesso. Uma pessoa que receba todas as condições favoráveis para ser bem sucedida e não as aproveita não se tornará nunca uma Outlier, enquanto que alguém que pelo seu esforço aproveita as oportunidades e chances que lhe aparecem, mais cedo ou mais tarde chegará lá. Foi exatamente isto que aconteceu com os exemplos citados por Gladwell, dos Beatles a Bill Joy, de J.P. Morgan a Joe Flom, de Rockfeller a Bill Gates: todos estes exemplos de Outliers tiveram oportunidades que também estavam disponíveis a outros que nasceram na mesma época, ou estudaram na mesma universidade, ou tiveram as mesmas chances. O que os diferenciou dos demais é que eles aproveitaram as chances que lhes foram dadas e os demais não. Sorte sem dedicação, oportunidades e chances sem esforço pessoal não produzem frutos e o autor não teve sucesso em discernir esses dois elementos do sucesso num nível conceitual adequado. Apesar de no decorrer do texto reconhecer o valor do trabalho significativo, Gladwell não foi capaz de perceber que esta é a principal causa próxima do sucesso: se esforçar por algo que vale a pena é que confere sentido à vida da pessoa, não as suas origens étnicas, seu local e/ou sua época de nascimento.

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