Obstáculos para uma cultura cristã

F. Pereira
9 min readMay 24, 2020

Um dos mais instigantes livros que li recentemente foi escrito pelo historiador católico Christopher Dawson, no qual ele aborda a evolução do modelo de educação liberal iniciado na Grécia antiga até o recente formato baseado na especialização científica e na formação para a cidadania. O livro a que me refiro chama-se “A crise da Educação Ocidental”[1] e as teses delineadas por Dawson merecem ser debatidas com profundidade pelos cristãos. O livro é dividido em três partes, sendo que na primeira o autor narra o desenvolvimento das diversas ideias pedagógicas desde a Grécia até os dias atuais, na segunda parte ele discute um modelo de educação voltado para a formação de uma cultura cristã para fazer frente ao contínuo processo de secularização das sociedades modernas, e na terceira parte analisa o impacto do progresso tecnológico na vida moderna.

Gostaria de me ocupar principalmente das teses defendidas por ele na segunda e terceira partes do livro, especialmente quanto ao principal obstáculo por ele detectado para a formação de uma cultura cristã. Há um trecho do antepenúltimo capítulo que é verdadeiramente paradigmático, o qual transcreverei com tradução livre:

“O problema vital da educação cristã é sociológico. Trata-se de fazer com que os estudantes sejam culturalmente conscientes de sua religião; de outro modo não serão senão personalidades divididas, com uma fé cristã e uma cultura pagã que se contradizem uma a outra continuamente. Temos que nos perguntar em primeiro lugar se somos cristãos que vivem acidentalmente na Inglaterra ou na América do Norte, ou se somos norte-americanos ou ingleses que vão à Igreja aos domingos. Não há dúvida de qual é a ideia do Novo Testamento; ali os cristãos constituem um povo no sentido plenamente sociológico da palavra, ainda que se encontra espalhado pelas diferentes cidades e nações. Mas hoje, pelo contrário, adotamos o conceito oposto, de modo que nossas culturas nacionais são as únicas culturas que temos, e nossa religião tem que existir num nível subcultural e sectário.[2] Assim o problema sociológico de uma cultura cristã constitui também um problema psicológico de integração e saúde espiritual. Este é o assunto chave. É preferível uma cultura de gueto do que nenhuma cultura religiosa, mas nas condições modernas, a solução do gueto carece de viabilidade prática. Temos que nos esforçar para constituir uma cultura cristã aberta, que seja suficientemente consciente do valor de sua própria tradição, a fim de que possa enfrentar a cultura secularista em igualdade de condições.”

Esta é, a meu ver, a tese central de Dawson, pois a recuperação da tradição cultural cristã constituirá a base dos seus trabalhos posteriores, notadamente as obras “A Formação da Cristandade” e “A Cristandade Dividida” no qual ele reconstitui historicamente as etapas do desenvolvimento da cultura cristã. A estrutura geral da narrativa destas últimas obras está exposta justamente nesta obra acerca da crise da educação ocidental. Contudo, meu intuito é comentar o diagnóstico preciso por ele efetuado de que os cristãos vivem num nível “subcultural” e “subreligioso”.

É preciso ressaltar que a obra foi escrita e publicada no início da década de sessenta, nos EUA, então um país predominantemente conservador, contudo o livro traz vários dados sociológicos mostrando que muitos cristãos já naquela época demonstravam um inequívoco indiferentismo religioso. No capítulo anterior ao do trecho citado o autor traz à baila pesquisas demonstrando que boa parte da população inglesa já não frequentava mais a Igreja, apesar de “não ter nada contra quem frequenta”, ou então simplesmente considerava a religião “um costume como outro qualquer”, ou que a “religião é algo bom desde que não se abuse dela”. Em suma, há mais de meio século tem ocorrido um fenômeno de perda generalizada da fé e isto muito em virtude do caráter “artificial” da vida moderna, segundo o autor. Neste sentido há outro trecho muito esclarecedor:

Como se explica esta mudança? Creio que se deve antes de tudo ao caráter artificial da cultura moderna que não se parece com nada com que se tem experimentado nas idades anteriores. Nossa cultura ocidental, moderna e secularizada, é uma espécie de cultivo de estufa. Por um lado, o homem está coberto pelo impacto direto da realidade, enquanto que por outro se vê submetido a uma crescente pressão por conformidade social. Raramente tem que pensar ou tomar decisões vitais por sua conta. Toda sua vida se desenvolve dentro de unidades artificiais muito organizadas-fábricas, sindicatos, oficinas, serviços de Estado, partidos- e seu êxito ou fracasso depende de suas relações com estas organizações. Se a Igreja fosse uma dessas organizações obrigatórias, o homem moderno seria religioso, mas como é voluntária e exige parte de seu tempo livre, ela é tida como uma instituição supérflua e desnecessária.” [3]

Ora, mas como é possível que a Igreja tenha deixado de ser uma instituição obrigatória, ou melhor, uma instituição culturalmente vital e necessária? Parece-nos que parte da explicação deste problema remonta à época das guerras religiosas entre católicos e protestantes, o que forçou os então nascentes Estados-Nacionais a adotarem estruturas jurídicas laicas, ou seja, sem vinculação a uma religião específica, ou a uma corrente doutrinal específica. A religião cristã que outrora fora o fator de unidade cultural da Europa, perdera o seu caráter formativo e universal após a Reforma, portanto, as sociedades modernas precisaram desenvolver outras formas de unidade cultural que não derivassem da religião, já que as discórdias doutrinais inviabilizaram uma forma de vida comum. A princípio, como o próprio autor menciona, os Estados Nacionais herdaram o papel então exercido pelo Cristianismo de conferir unidade à vida social, mas após a Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra e posteriormente em outros países, as economias de livre mercado passaram também a exercer importante papel na definição dos identidades sociais dos cidadãos. Hoje em dia não somos apenas brasileiros que vão à Igreja aos domingos, mas sobretudo à feira e ao shopping para fazer compras: tornamo-nos seres consumistas.

Com base neste diagnóstico, ou seja, de que o indiferentismo religioso moderno é consequência de uma forma de vida artificial, Dawson conclui sua obra argumentando que o progresso tecnológico das sociedades modernas veio desacompanhado de uma ordem moral que lhe imprimisse uma direção espiritual, daí porque a única maneira de pôr ordem a esse caos tecnocrático seria a recuperação de uma formação cultural humanista especialmente aquela desenvolvida no contexto cristão. O autor parte das premissa de que toda civilização sobrevive de suas tradições educativas, portanto, recuperar estas tradições educativas do Ocidente (a humanista e especialmente a cristã) seria, portanto, o meio apropriado de se enfrentar o crescente estado de secularismo moderno, baseado num cultivo desregrado da tecnologia e da ciência sem direções espirituais.

O diagnóstico de Dawson continua fundamentalmente atual, entretanto, parte da sua argumentação parece-me que necessita de algum aprimoramento. Com efeito, o historiador inglês parte de uma concepção de ordem tecnológica que é comum aos católicos ou aos cristãos em geral, que é aquela segundo a qual a ordem tecnológica só é boa se for guiada por certos valores morais que lhe direcionem sua utilidade. Poderíamos definir essa concepção como concepção instrumentalista ou instrumental da tecnologia em oposição a uma concepção moral ou moralista da tecnologia.

Com efeito, a argumentação de Dawson não leva em conta o advento de uma nova doutrina ou filosofia moral que surgiu justamente em seu país de origem, ou seja, na Inglaterra da virada do século XVIII e primeira metade do século XIX, em plena época de Revolução Industrial. Refiro-me à doutrina utilitarista criada inicialmente por Jeremy Bentham e desenvolvida posteriormente por seu principal discípulo, John Stuart Mill. Bentham advogava a ideia de que a felicidade do homem consistia na maximização de seu bem-estar e na minimização respectiva de seu sofrimento e, caso esta ideia fosse aplicada em escala civilizacional, seria possível criar sociedades maximamente “felizes”, ou seja, constituída pelo bem-estar geral de todos os indivíduos. Mill, um dos principais discípulos de Bentham tentou levar essa ideia até as últimas consequências, tanto que, por ocasião de seu casamento, reconheceu que sua esposa deveria ter os mesmos direitos patrimoniais que ele (maximização do bem-estar do cônjuge), um ato que fora visto como revolucionário e extremamente inusual para o século XIX. É segundo esta filosofia moral, qual seja, a da maximização do bem estar individual e coletivo que deveríamos analisar as sociedades modernas, pois se é verdade que não existe civilização sem uma ordem moral a constitui-la, a civilização moderna, se seguirmos a argumentação de Dawson, seria a única e bizarra exceção da história humana. Portanto, a conclusão do historiador inglês de que as sociedades modernas criaram uma ordem tecnológica sem uma ordem moral a orientá-la não se sustenta.

Com efeito, se repararmos bem, o imperativo utilitarista de maximização do bem-estar individual e coletivo é praticamente a tradução para o campo moral da máxima capitalista de maximização do lucro: o autoaperfeiçoamento constante da economia e das técnicas produtivas passaram a ser parte integrante da vida moral dos indivíduos e das sociedades, o ideal de “ordem e progresso” não está em nossa bandeira à toa, e hoje em dia não sai da boca dos economistas e dos formuladores de políticas públicas a necessidade do país se “desenvolver”. As nações hoje em dia são basicamente classificadas segundo o critério utilitarista-desenvolvimentista: as mais desenvolvidas são aquelas que proveem relativo bem-estar a seus cidadãos devido ao progresso econômico, tecnológico, científico, artístico, literário, possuem baixa taxa de mortalidade infantil, saneamento básico para toda a população, baixo nível de pobreza, alto ou relativamente estável nível de emprego, alfabetização universal, energia elétrica, instituições políticas relativamente estáveis, direitos e garantias fundamentais assegurados etc. Por outro lado, as nações que falham em maior ou menor grau em atingir os objetivos acima descritos são consideradas menos desenvolvidas, pouco eficientes quanto à finalidade de prover o maior bem-estar possível aos cidadãos. Esses objetivos, contudo, só foram possíveis graças ao alto grau de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico das sociedades modernas, portanto, a rigor, estas se diferenciam das civilizações antigas e medievais não porque inventaram uma ordem tecnológica e científica sem ordem moral, mas porque houve, por assim dizer, uma fusão entre os ideais morais e técnico-científicos. Existe uma tendência do homem moderno a identificar progresso técnico-científico com progresso moral, porque ele entende que melhorar as condições materiais da nossa existência é algo bom em si mesmo, logo, a tecnologia não é moralmente neutra, ela é constitutiva da ordem moral que modela a civilização contemporânea.

Há motivos historicamente razoáveis para associar tecnologia com moral e cultura, pois se olharmos para o passado veremos que todas as grandes mudanças culturais e civilizacionais foram precedidas por inventos técnicos. As sociedades primitivas mudaram seus hábitos nômades quando aprenderam a arte de cultivar o solo (agricultura) e se tornaram sedentários, construindo dessa forma as primeiras habitações citadinas. O uso do fogo para cozinhar a caça, o uso do sal para conservar a carne, a invenção do alfabeto e o surgimento da escrita, todos estes fatos são basicamente revoluções tecnológicas, transformações da natureza e formas originais que o homem criou para melhor se organizar em sociedade, portanto, não é correto fazer uma separação entre tecnologia e moral e conceber a primeira como mero instrumento da segunda, pois historicamente ambas surgiram juntas: revoluções tecnológicas ocasionaram revoluções nos costumes e consequentemente na moral. Estamos assistindo a uma nova revolução deste tipo graças à Internet, por exemplo.

Deste modo, a concepção instrumentalista da tecnologia advogada por boa parte dos cristãos limita boa parte deles em compreender a modernidade em seu devido ineditismo histórico, ou seja, pela primeira vez na história de nossa espécie uma civilização inteira foi criada sem base religiosa e o Cristianismo existe apenas sob uma forma subcultural e subreligiosa como o próprio Dawson mencionou. Para restaurar, portanto, uma cultura verdadeiramente cristã dever-se-ia não apenas voltar a estudar os clássicos humanistas e cristãos, mas a estrutura material da nossa existência deveria ser alterada por completo, de modo que fosse possível aos cristãos não viverem da maneira “artificial”, mencionada pelo historiador inglês.

Contudo, aqui encontramos o principal dilema e obstáculo para a formação de uma cultura cristã: as condições de vida moderna quase que inviabilizam por completo um estilo de vida voltado para a contemplação e a oração, pelo contrário, por todos os lados somos motivados a agir e sermos superprodutivos, de que modo, portanto, é possível ser cristão ou viver como cristão num ambiente avesso ou indiferente a experiências religiosas? Dá-se aqui algo parecido com que Peter Sloterdijk afirmou com relação à “morte do pensamento”, em que o filósofo alemão afirma que o estilo tradicional de se fazer filosofia como contemplação da verdade desinteressada de urgências práticas é quase impraticável. A vida moderna “não convida a pensar” diz o filósofo alemão[4] e eu acrescentaria que ela convida muito menos à oração ou a ida aos cultos de domingo. Por motivos que ainda precisam ser melhor estudados o Evangelho é escândalo para os judeus, loucura para os gentios e indiferença para os modernos.

[1] “La crisis de la educación ocidental”; Ediciones Rialp S.A; Madrid. 1962. Pg. 188–189. Existe uma versão traduzida em português pela “É Realizações”, disponível no seguinte link: https://www.erealizacoes.com.br/produto/a-crise-da-educacao-ocidental

[2] Isto é consequência do laicismo.

[3] Idem. Pg. 173–174.

[4] https://www.fronteiras.com/entrevistas/peter-sloterdijk-la-vida-atual-nao-convida-a-pensarr

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