Nota sobre a ideia de consciência de si em Lavelle

F. Pereira
3 min readJul 18, 2021

Segundo Lavelle somos constituídos por nossa consciência, mas o que vem a ser isso? [1] O nosso ser é nossa autoconsciência no sentido de que aquilo que atribuímos a nós como nos pertencendo e nos constituindo não pode se dar de outra forma a não ser pelo ato mesmo de nos conhecer. É preciso ressaltar que Lavelle elabora sua filosofia como uma meditação cada vez mais aprofundada acerca do significado da expressão bíblica “Eu sou Quem Eu Sou” que exprime nada mais nada menos que o Ser de Deus mesmo. Se, por outro lado, relembrarmos que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, só nos tornamos nós mesmos à medida que nos assemelhamos a Deus em sua Íntima Natureza, i.e., como Ser totalmente Autoconsciente de Si, como Personalidade Absoluta e Livre. É nesse sentido que somos nossa autoconsciência e vice-versa. Somos nossa autoconsciência porque fomos criados para participar do Ato Criador divino, participarmos de seu Ser e Conhecer, tornamo-nos um análogo do “Eu Sou” trinitário. Daqui podemos tirar várias conclusões: a) Somos livres porque Deus é livre; b) Nossa consciência é imortal porque Deus é Eterno; c) Somos vocacionados à criatividade porque somos filhos do Criador e assim sucessivamente. Mas se somos constituídos por nossa autoconsciência a meditação sobre nós mesmos não só nos constitui como nos forma e transforma: somos cada vez mais nós mesmos à medida que nos conhecemos e neste itinerarium mentis de nos tornarmos nós mesmos fortalecemos nosso ser e nosso caráter. O centro de nossas preocupações muda porque nós mudamos e nos tornamos quem verdadeiramente somos: tornamo-nos nosso destino não porque estava previamente assinalado, mas porque estava sempre presente sob a forma de potência não manifesta, como consciência bruta e alienada de si.

Tendemos a pensar a Eternidade como fora do tempo, quando na verdade ela é imanente a este porque na verdade o tempo está imerso no Eterno, ou como diria Schelling ao comentar Spinoza, o tempo é o acidente do eterno e do infinito. Assim, sempre fomos quem nos tornaremos, porque o tempo é apenas uma forma acidental de desenvolvimento do que sempre-é-desde-já. A rigor, só existe o instante, mas nossa inteligência só o capta de maneira diferida, por isso que demoramos a nos conhecer: aquilo que sempre fomos ainda não havia se revelado a nós sob a forma de autoconsciência.

Muitas pessoas conduzem suas vidas alienadas de si mesmas, se dispersando temporalmente numa multiplicidade de experiências fragmentárias e sem unidade. Imaginam: “eu era assim, agora sou assado”, mas na verdade tal pessoa sempre foi o que é: o tempo não nos muda, apenas nos autorrevela. E nosso ser é revelado quando reduzimos essa multiplicidade de experiências a um princípio comum, a uma unidade inteligível que explicita o centro de preocupações e/ou aspirações que desde sempre conduziu nossas ações. Se desde sempre nos preocupamos primordialmente com bens materiais, desde sempre fomos materialistas.

O tempo, portanto, deve ser pensado como uma categoria da consciência, mas não segundo um antes e depois (como imaginava Aristóteles), mas segundo um “aquém-de-si” e uma “posse-de-si”. Nosso passado é “aquém-de-si” porque é nosso próprio ser em sua forma de potência, de possibilidade de autoconstituição e autorrevelação. Nosso presente é nossa posse de si na medida em que nosso ser se autoconstituiu e se autorrevelou como potência unificada e desdobrada do que já era e “pré-tende” ser. Só quando nos vemos como uma unidade vital e consciente de nossas potências tornamo-nos nós mesmos. Porém, pode-se viver a vida inteira sem se “autopresentificar-se”, sem se autoconstituir e se autoconhecer. O simples correr dos anos não nos amadurece, não nos forma em quem somos se permanecermos alienados de nós mesmos. Sem a consciência de si não somos nós mesmos, e a multiplicidade de experiências não reduzidas à unidade do “Si” da própria personalidade, ao invés de nos constituir nos alienará e dispersará: seremos estrangeiros de nós mesmos.

[1] Lavelle, Louis, “A consciência de si”; São Paulo, Editora É Realizações, 2014.

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