Leituras de janeiro

F. Pereira
8 min readJul 26, 2021

It’s fact, o mês ainda não acabou[1] e mesmo depois de ter lido seis livros tenho dificuldades de organizar e assimilar as ideias mais importantes com as quais tive contato. Epicteto me ensinou muitas coisas, dentre elas de que a felicidade depende apenas e tão somente de nós mesmos, que não devemos nos considerar filósofos nem depender de julgamentos alheios, conservarmos uma vida “simples, pura e bela”. A partir da afirmação de que a felicidade depende apenas de nós ele faz a extraordinária inferência de que a morte “não está sob nosso encargo” e, por isso, não deveria afetar nossa paz interior. Morrer é um evento tão natural quanto chover e, em ambos os casos, não deveríamos nos perturbar pelo fato da natureza seguir seu curso, afinal, todos somos mortais, é natural que entes queridos e nós mesmos morramos, isto não depende de nós. Se não depende de nós, não tem o condão de nos tornar mais ou menos felizes.

A felicidade também é o tema da carta de Epicuro a Meneceu e, segundo o filósofo, não existe idade para praticar a filosofia porque não existe idade para ser feliz. Na esteira da filosofia como sabedoria de vida ou “way of life”, Epicuro defende que a verdadeira felicidade consiste no cultivo dos prazeres certos (não os banais, ou puramente sensíveis), prega um hedonismo seletivo, pois admite que alguns prazeres só nos causam danos e sofrimentos posteriores, enquanto que algumas adversidades podem nos trazer prazeres mais elevados no futuro. Portanto, é próprio do filósofo saber selecionar os prazeres, i.e., aqueles que efetivamente fazem bem à nossa alma e não aqueles que proporcionam um benefício imediato seguido de infortúnios futuros. Ao contrário de Epicteto, porém, Epicuro defende que não devemos temer a morte não porque ela pertença ao curso natural das coisas e sim porque quando morremos não “sabemos” que estamos mortos. O filósofo do Jardim era materialista, portanto, para ele, a morte era a privação da consciência e das sensações: depois da morte não há nada, logo, não há por que temê-la.

A morte também é o tema da obra “O fim da Modernidade” do filósofo italiano Gianni Vattimo, contudo, a morte que ele aborda é a famosa “morte de Deus” de que falou Nietzsche. Vattimo tenta defender a tese de que as culturas que foram construídas e moldadas pela ideia de Deus estão chegando ao fim, morreram, por assim dizer, o que nos abre espaço para uma nova época na história humana, a saber, a pós-moderna. As grandes religiões permanecem sob a forma de monumentos, isto é, não como algo que perdura e sinaliza sua solidez através dos séculos, mas como algo que já perdeu o seu valor vital, o seu vigor cultural e não possui mais um impacto concreto em nossas vidas. Com efeito, todo monumento nos faz recordar de uma época passada, cuja pujança ou intensidade espiritual já não existe mais, o monumento expõe a morte daquilo que outrora foi importante, mas já não é mais. A fé se esfriará no coração de muitos, como está escrito nos Evangelhos, e o fim da modernidade assinala o fim das religiões como formas de vida culturalmente relevantes para nós, pois o seu destino é perdurarem como vestígios daquilo que não tem mais vida.

Os três livros seguintes não agregaram nada de extraordinariamente novo. “Conselhos sobre o trabalho intelectual” de Guitton é interessante no sentido biográfico, pois o autor cita diversas vezes ao longo da obra o modo de trabalhar dos grandes filósofos e intelectuais do passado, o que por si só vale a leitura. Foi interessante saber como Bergson, Pascal, La Grange, Allan Poe ou Stendhal se preparavam para escrever suas respectivas obras e, como era de se esperar, o que há de comum entre eles é a completa liberdade e diversidade de métodos e técnicas de trabalho. O que se pode tirar de proveitoso das diversas experiências dos intelectuais e filósofos do passado é que a produção de uma obra exige tempo, paciência e disciplina. Os métodos e as técnicas no fim das contas devem se amoldar ao estilo e personalidade do intelectual. Na esteira dos livros voltados para a formação do caráter, “A boa educação” do Pe. Toth não possui muitas novidades. Escrito para o público de jovens católicos de 14 a 17 anos que viviam na década de 50, muitas instruções e conselhos sobretudo de etiqueta pessoal são datados. Apesar disso a obra conserva atualidade no sentido de reafirmar a doutrina e os valores católico-tradicionais. Um ponto que para muitos hoje seria considerado polêmico é o conselho de não ler obras cujo conteúdo moral ou intelectual contraria o ensino da Igreja, uma vez que isto poria em risco a “salvação da alma”. Mas como poderíamos avaliar o “risco salvífico” de uma obra sem antes ter contato direto com ela? Deveríamos terceirizar essa responsabilidade aos padres e ler apenas o que eles recomendam? Alguém que só lê o que os padres recomendam pode ser considerado intelectualmente independente? The last but not least, uma distinção feita pelo autor que pode ser vista como útil é a divisão das leituras conforme a sua finalidade, ou seja: a) formação religiosa; b) aquisição de conhecimento; c) distração e lazer. Emílio M. Lopez em seu “Como estudar, como aprender” faz uma revisão de literatura científica a respeito do que significa aprender e os meios adequados para aquisição de conhecimento. O autor confronta algumas ideias pedagógicas clássicas e as atualiza, ora refutando o que se tornou obsoleto, ora reafirmando o que se provou como verdadeiro com o tempo. Um mito que o autor refutou (sustentado, inclusive, pelo Pe. Toth na obra anteriormente citada) é a de que estudar à noite faz mal. Na verdade os estudos neurológicos mais recentes demonstram que o estudo noturno facilita a retenção das informações, pois é justamente durante o período do sono que as sinapses se formam e conseguem reter o que foi anteriormente estudado.

Disse seis, mas me equivoquei. Na verdade, foram sete livros sendo uma releitura, no caso, de Schelling e seu “Propedêutica Filosófica”, o qual, pelo menos para este mês, foi a leitura que mais me impactou ao lado de Epicteto. Nessa obra o filósofo alemão reconstitui a história da filosofia como uma tensão sempre crescente entre o real e o ideal, sendo que, em cada fase ou época histórica prevalece uma “potência” ou do real ou do ideal. Inicialmente, as primeiras grandes tentativas de explicar o ser se deram com os filósofos da natureza, ditos pré-socráticos, que procuravam explicar o ser das coisas através de seus elementos materiais. Assim, para Schelling, o materialismo é a primeira “potência” dos sistemas filosóficos “realistas”. Como a tentativa de explicação materialista fracassa porque não consegue dar conta dos fenômenos do espírito, surge então o dualismo como tentativa de pensar a realidade como constituída de duas substâncias originais e irredutíveis entre si, o corpo e a alma, a natureza e o espírito, etc. Contudo, o dualismo (Schelling aborda especialmente Descartes) não consegue explicar como o corpo e a alma se relacionam uma vez que são radicalmente diferentes, então o realismo filosófico é forçado a se elevar à sua última e acabada potência, que segundo Schelling, se cristaliza no sistema de Spinoza. Ora, em Spinoza a matéria e o espírito são ambos atributos divinos, aspectos de uma mesma substância, o que o livra das dificuldades do materialismo e do dualismo simultaneamente.

Essas são, contudo, as três etapas percorridas pelos sistemas “realistas”, o “ideal” na filosofia começa com Leibniz, se eleva a uma segunda potência com Kant e Schelling pretendia pôr termo ao caminho do “ideal” por meio de sua própria filosofia da identidade, mas desta vez pelo lado idealista: repetir Spinoza às avessas. A obra me marcou muito pelo seu caráter elucidativo sobre o modo como os filósofos pertencentes ao chamado “idealismo alemão” pensavam a tarefa da filosofia. Eles de fato acreditavam que era possível conduzir o pensamento a um ponto ou nível intelectual “absoluto”, e o idealismo absoluto de Hegel ou da “Doutrina das Ciências” de Fichte, ambos em contraposição ao idealismo transcendental de Kant (2ª potência do “ideal” que segundo Schelling, inaugura o dualismo no idealismo) devem ser pensados e interpretados como tentativas neospinozistas de obter uma “filosofia da identidade” pelo lado do “ideal” ou “espiritual” da filosofia.[2]O próprio Dieter Heinrich já havia ressaltado que o movimento intelectual do idealismo alemão se nutre de motivos “spinozistas”.[3] O que me chamou atenção também é que o movimento intelectual idealista é muito mais sofisticado e complexo do que se pode imaginar à primeira vista. As objeções vulgares de que os idealistas reduzem a realidade ao que pensamos a respeito dela, como se o real fosse um “produto mental” do espírito humano não passam de bobagens que sequer resvalam no que os idealistas tinham em mente. A rigor, eles viam a tarefa da filosofia, no estágio histórico que se encontrava, com a missão de reconquistar uma forma de visão intelectual unitária do ser, e não uma mera “reflexão sobre o finito”, como diria Schelling, i.e., uma mera especulação sobre a diversidade de experiências humanas sem um princípio de identidade comum que lhes desse unidade. Obviamente que os idealistas tinham espírito e ambição sistemáticos e pensar o ser de maneira sistemática e como que resultando de um processo de autodesenvolvimento do espírito (seja ele humano ou divino) ainda é uma tarefa intelectualmente frutífera.

Quanto à objeção propriamente dita de que os idealistas produziram sistemas filosóficos segundo os quais o ser é produto do pensar, isto pode ser entendido de dois modos. Se o “pensar” em questão refere-se ao “Logos Divino”, então é possível reconduzi-los, ou melhor, reconstruir seus sistemas filosóficos como tentativas de repetir em escala humana a unidade divina entre ser e pensar, entre contemplar e agir, entre liberdade e necessidade e assim sucessivamente. Em Deus todas as oposições estão suspensas e se a busca da sabedoria possui como missão autodeificar-se (algo que os filósofos antigos, num certo sentido defendiam), é natural concluir que a filosofia deveria alcançar uma forma de vida e pensamento que imita em escala humana a autotransparênica e coerência divinos. Se, porém, a expressão acima mencionada for interpretada em sentido puramente humano, ou seja, se o “pensar” for interpretado como mera representação mental contingente deste ou daquele indivíduo, então ela erra o alvo por quilômetros de distância. Os idealistas pretendem recuperar a seu próprio modo a ideia de Aristóteles segundo a qual “a alma humana é num certo sentido todas as coisas” e romper com as especulações banais dos racionalistas e empiristas modernos. Para os idealistas o problema do conhecimento humano não pode ser pensado nos termos em que filósofos empiristas ou racionalistas colocaram, isto porque não faz sentido questionar se nossas representações mentais “correspondem de fato” à natureza das coisas, ou se possuímos “ideias inatas”. Todas as ideias ou representações nossas são elaborações do nosso espírito a partir de imagens das coisas que ficaram armazenadas em nossa memória, portanto, a rigor, nossas ideias não correspondem às coisas, mas às imagens que temos delas.[4] Ademais, e este é o ponto central do idealismo alemão, o espírito humano pertence à natureza, logo, seu modo de ser supõe uma forma de unidade com ela, do contrário todo processo abstrativo sequer seria possível. O objetivo dos idealistas é deslocar o foco das reflexões epistemológicas: ao invés de nos perguntarmos como o homem conhece a natureza, deveríamos perguntar como a natureza produz um espírito que através de sua autorreflexão conhece a si mesmo e a natureza do qual é parte integrante, ou dito de outra maneira, como a natureza conhece a si mesma através da formação espiritual do homem. Portanto, o foco dos idealistas é como pensar a unidade e identidade de espírito e natureza que desde sempre existiu, mas que os filósofos anteriores dissociaram de maneiras diversas, seja por meio de uma recaída no materialismo ou no dualismo, em ambas as suas formas ou “potências” reais ou ideais, para seguirmos a argumentação schellingiana.

That’s the essential, no que tange ao mês de janeiro, mês do meu aniversário que, curiosamente, se dá um dia depois do aniversário de nascimento de Schelling, que é 27 de janeiro. Apesar dos avanços ainda sinto a necessidade de articular essas leituras num todo sistemático, um ideal nem sempre alcançável, mas como os idealistas, me motiva diariamente ao estudo.

[1] Escrevi este texto em 22.01.2021.

[2] O conceito de Espírito Absoluto de Hegel deve ter isto em conta.

[3] Henrich, Dieter “Between Kant and Hegel”, Harvard University Press, 2008.

[4] Essa tese é a defendida por Aristóteles e repetida por Schelling em outra obra sua sobre a ideia de natureza.

--

--