Da razão precária

F. Pereira
8 min readJun 14, 2021

A razão humana é precária. Esta parece ser a conclusão a que devemos chegar depois de lermos a volumosa e densa obra “Estrutura e Ser” do filósofo Lorenz B. Puntel. Logo na introdução e no primeiro capítulo ele apresenta e desenvolve o conceito de quadro referencial teórico a partir do qual pretende sustentar uma sofisticada explicação acerca da estrutura da realidade enquanto tal e no seu todo, através de uma articulação linguística rigorosa. É difícil apresentar falhas na sua argumentação, até porque a estrutura teórica por ele elaborada segue um modo de fundamentação coerentista, no qual o esclarecimento das proposições fundamentais são apresentadas de modo “reticular”, ou seja, em conexão com as outras proposições do sistema teórico, as quais, por sua vez, também são explicadas em sua conexão com as outras. Desta forma, ficamos com a impressão de que o autor não deixa “nada de fora” e é bem-sucedido na explicitação do seu robusto quadro teórico. Mas o que chama atenção, contudo, é o fato de que Puntel não se debruça sobre as possíveis interrelações entre a diversidade de quadros referenciais teóricos possíveis, limitando-se a afirmar que a “verdade absoluta é aquela presente em todos os quadros referenciais teóricos possíveis” adotando-se assim o que ele denomina um “relativismo epistemológico moderado”. Aqui precisamente é que surge a dificuldade de seu posicionamento que não raro é similar ao de muitos filósofos contemporâneos: como alguém pode afirmar que a verdade absoluta está presente em todos os quadros teóricos mas não pode explicitar esse saber total? Ao fim e ao cabo esse é basicamente todo o problema da metafísica, ou seja, como o homem pode ter a pretensão de explicar a estrutura da realidade “em si mesma e no todo” se é vedado ao homem o acesso a este saber total? Como podemos pretender que nossas explicações holísticas da realidade são de fato correlacionáveis com o real se o real no seu todo não nos é acessível? Se o real é um todo, como podemos nos colocar, por assim dizer “fora” dele para abarcá-lo com um olhar? Esta perspectiva parece ser possível somente a Deus que, segundo algumas interpretações teológicas tradicionais é a realidade em si mesma e, portanto, vê a si mesmo perfeitamente. Mas neste caso, a metafísica perde o seu valor de especulação filosófica autônoma e acaba por ser absorvida pela teologia, o que parece ser a posição do Pe. Álvaro Calderón, por exemplo, que afirma não ser adequado a um sábio perder muito tempo com a metafísica já que a teologia tem por objeto a natureza de Deus em si mesma… Aqui somos forçados a recuperar a crítica de Heidegger em “Ser e Tempo” segundo a qual a pergunta pelo ser é sempre eclipsada pela pergunta pelo ente e os filósofos assim como os teólogos sempre terminam transformando a metafísica numa “ontoteologia”, isto é, uma teoria segundo a qual a realidade está estruturada a partir de um Ente Supremo que normalmente é chamado de Deus, e todos os demais entes são emanações ou criações deste Ente Supremo, desta forma, a pergunta pelo “ser dos entes” é completamente esquecida e substituída por uma apressada hierarquização de entidades. Com efeito, a noção de ser é a mais abstrata e mais básica do vocabulário filosófico, sendo que não conseguimos recuar linguisticamente para nenhuma outra noção mais fundamental, o que torna definição do conceito de “ser” sempre em suspenso.

Não obstante, o Sr. Puntel defende que o conceito de ser desenvolvido pelo quadro teórico de ES é suficiente para dar conta do questionamento que fizemos parágrafos acima sobre a possibilidade de um saber absoluto do real. Puntel não defende, frise-se, que algum indivíduo humano possa adquirir um saber absoluto e totalizante do mundo, mas defende que existam ou possam existir uma pluralidade de quadros teóricos que abarquem aspectos fundamentais do ser e do modo como ele é estruturado linguisticamente pelo homem. Contudo, esta resposta num livro de filosofia tão denso e bem fundamentado soa como um truísmo, independentemente do autor chamar o seu relativismo de “moderado”. Dizer que um saber absoluto da realidade em seu todo é inacessível ao homem através de apenas um quadro teórico não é mais que repetir Kant em sua crítica às metafísicas tradicionais, ou seja, o homem só pode obter um conhecimento limitado às suas condições de possibilidade espaço-temporais da realidade, nunca a realidade “em si mesma” ou em seu todo-de-um-modo-definitivo. Deste modo, não há como fugir à conclusão de que o autor lançou mão de um vocabulário teórico rebuscado para cair no mesmo relativismo de sempre, ainda que sua teoria seja muito bem estruturada e objetivamente embasada. Se assim não fosse, Puntel teria que admitir que seu projeto teórico é dogmático, ou seja, o que pretenderia demonstrar é que o quadro referencial teórico por ele desenvolvido é superior a todos os existentes e, portanto, deveria ser aceito como “A” explicação teoricamente correta para realidade enquanto outro filósofo não desenvolva outro quadro teórico melhor fundamentado. Por outro lado, se o autor mantiver a afirmação de que a “verdade absoluta” se encontra em todos os quadros teóricos existentes ou em desenvolvimento, não teríamos qualquer motivo racional para acolhermos o quadro teórico de ES como referência em relação a seus concorrentes, o que é o mesmo que incidir em relativismo, afinal, não teremos nenhuma critério extrateórico para decidirmos entre, por exemplo, ES de Puntel ou CIS de Rorty. Para deixar mais clara esta última afirmação suponhamos a situação segundo a qual um filósofo chegue à conclusão de que os argumentos desenvolvidos por Richard Rorty em CIS são tão bem fundamentados quanto aqueles presentes em ES não obstante as conclusões de ambos os quadros teóricos são fundamentalmente divergentes. Qual quadro teórico o filósofo deverá adotar? Se para resolvermos o impasse lançarmos mão de um argumento que parte das proposições e explicações de ES já estaremos tomando posição a favor deste quadro teórico e, forçosamente, nossos critérios para decidir por ES ao invés de CIS serão intrateóricos ou redundantes: já estamos assumindo como verdadeiras um conjunto de proposições que deveríamos colocar à prova, ou dito de outro modo, já estamos fazendo uso favorável dos conceitos que deveríamos questionar. A recíproca também é verdadeira caso adotássemos argumentos de CIS. Uma outra alternativa para resolver o dilema é usar conceitos e argumentos extrateóricos que não estão presentes nem em CIS nem em ES. Mas neste caso estaríamos fazendo uso de proposições de um terceiro e implícito quadro teórico e assim o problema se repete: por que este terceiro quadro teórico é melhor fundamentado que os dois anteriores? Por quais motivos deveríamos aceitar os seus argumentos como sólidos? Se por razões intrateóricas, seremos redundantes, se por razões extrateóricas o problema retorna e assim sucessivamente ad infinitum.

Desta forma, a densa e sólida argumentação de ES nos leva a ter que admitir que o saber humano acerca da realidade em seu todo é precário, isto é, nunca conseguiremos atingir um saber que responda definitiva ou derradeiramente os questionamentos sobre a estrutura do ser enquanto tal, legando à metafísica a trágica admissão de que estará sempre adiando as respostas definitivas para os seus próprios problemas. Mas se a metafísica enquanto saber holístico do ser nunca poderá realizar a sua tarefa, qual afinal é a sua utilidade? Qual o sentido de buscarmos por uma resposta que nunca encontraremos? Por que deveríamos construir quadros teóricos que na melhor das hipóteses só nos fornecerão um esboço de um saber holístico do ser, o qual será sempre fundamentalmente aberto a novas determinações e enriquecimentos? De duas uma: ou Kant está certo em afirmar que a metafísica não pode jamais se desenvolver como saber científico do real enquanto tal, ou, como diria Heidegger, ela estará fatalmente limitada à ontoteologia, limitada a um saber dogmático calcado em doutrinas religiosas da realidade. Isto nos leva a ter que admitir, portanto, que todos os quadros teóricos a serem elaborados no presente ou no futuro sobre a estrutura da realidade serão necessariamente precários, pois nunca poderão fornecer respostas derradeiras às especulações sobre o ser em seu todo, muito menos fornecer critérios totalmente objetivos para decidir acerca de dois quadros teóricos concorrentes e igualmente sólidos, pois o conceito de objetividade estará sempre vinculado a um quadro teórico em particular.

Assim, por exemplo, suponhamos uma argumentação que faz uso do operador teórico empregado por Puntel segundo a qual “é o caso que o quadro teórico de ES expressa proposições verdadeiras sobre a realidade”, ou em linguagem formal ES(p). Mas suponhamos também que “é caso que CIS expressa proposições verdadeiras sobre a realidade que são contraditórias a ES” ou, (CIS(p) ^ (~ES)). Neste caso teríamos proposições ditas verdadeiras em ambos os quadros teóricos não obstante serem contraditórias uma às outras, ou seja, se alguma é verdadeira a outra é falsa, ou dito de outro modo, se for verdade que no quadro teórico ES que “x é verdadeiro”, então será falso no quadro teórico de CIS que “x é verdadeiro”. Formalizando, teríamos: ((ES(x) ^ CIS(~x)).

Ante o exposto, somos obrigados a criticar o posicionamento de Puntel no Capítulo 2 de ES sobre o particularismo epistemológico, no qual o autor defende a ideia de que o sujeito não exerce uma função relevante da determinação do conteúdo de verdade de uma proposição tida como universalmente válida. Contudo, o exímio autor esquece que ele próprio, ao elaborar o quadro teórico de ES já está assumindo uma posição particularista, mas não um particularismo epistemológico e sim um particularismo, digamos, intrateórico. Pois para criticar o conceito de sujeito particularista presente em diversos relativismos, ele próprio assume a perspectiva de seu próprio quadro teórico, muito embora se esforce para distinguir entre uma perspectiva “concreta” de uma perspectiva “particularista”. A distinção é inócua pois como ressaltamos acima entre dois quadros teóricos concorrentes igualmente bem fundamentados, não há como decidir entre um ou outro, logo, a perspectiva “concreta” do autor será apenas mais uma dentre várias outras possíveis, que também são “universalmente válidas”. Mas se existem posicionamentos concorrentes universalmente válidos entre vários quadros teóricos existentes, fica difícil dizer objetivamente por qual deles um “sujeito universalista” deveria optar.

Mas não sejamos injustos. Puntel defende que a objetividade/racionalidade é possível no discurso filosófico mas não a completude, afinal Gödel já demonstrou que é impossível construir um sistema formal que consiga comprovar através de seus próprios meios a sustentação de suas mesmas proposições, o que torna todo e qualquer sistema teórico incapaz de uma comprovação absoluta ou definitiva. Contudo, se assim é, como poderemos nos furtar dos relativismos filosóficos? Ainda que sejamos objetivos na nossa argumentação de acordo com um quadro teórico dado, nosso saber sobre o real carecerá sempre de novas determinações ou “concretizações” como diria Puntel, logo, todo o saber que o homem pode adquirir sobre o ser será sempre precário e subdeterminado. Desde Kant, portanto, a filosofia continua a oscilar entre dogmatismo e relativismo e há elementos em ES que nos permite interpretá-la ora de um modo, ora de outro. Apesar do esforço hercúleo do autor em tentar apresentar uma fundamentação estruturalmente objetiva para sua obra, no entanto, ele sucumbe mais uma vez à tentativa de construir uma metafísica com “resultados estáveis”, apesar da incontornável precariedade do empreendimento.

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