Crítica da razão insana

F. Pereira
10 min readMar 14, 2020

É célebre a descrição de Chesterton em seu “Ortodoxia” a respeito da “loucura das virtudes” referindo-se a um Cristianismo que havia perdido a sua unidade espiritual. Talvez esta seja a maneira mais tradicional de se caracterizar a modernidade em relação ao Cristianismo, isto é, como processo de desintegração interna da religião católica, tendo como principais eventos o Renascimento, a Reforma e finalmente a Revolução Francesa38. Em outro lugar, o mesmo Chesterton criticará os intelectuais e filósofos do seu tempo por serem demasiado cristãos para reclamarem do Cristianismo. Dessa forma, o exímio apologeta inglês protestará contra os seus contemporâneos pelo fato de eles não estarem propriamente fora do Cristianismo tal como um pagão budista ou confucionista. Os pensadores modernos estão numa posição intermediária entre manter e abandonar o Catolicismo:

A ideia deste livro, em outras palavras, é que, depois de realmente fazer parte da cristandade, a segunda melhor coisa é situar-se realmente fora dela. E um aspecto particular dessa ideia é que os críticos populares do cristianismo não se situam realmente fora dele. Encontram-se num terreno discutível, em todas as acepções do termo. Duvidam de suas próprias dúvidas. A crítica deles assume um tom curioso: é como uma gritaria aleatória de analfabetos. Produzem um palavrório atualizado e anticlerical numa espécie de conversa fiada. Queixam-se de curas que se vestem como curas; como se devêssemos todos ter mais liberdade se todos os policiais que nos perseguissem ou nos capturassem fossem detetives à paisana. Ou então se queixam de que um sermão não pode ser interrompido e chamam o púlpito de castelo de um covarde, embora não chamem o escritório de um editor de castelo de um covarde. Isso seria injusto tanto para com jornalistas quanto para com sacerdotes; mas seria muito mais verdadeiro em referência a jornalistas. O clérigo se apresenta em pessoa, e alguém poderia facilmente lhe desferir um chute quando saísse da igreja; o jornalista esconde até o próprio nome de modo que ninguém pode chutá-lo. Os jornalistas escrevem cartas e artigos malucos e sem sentido sobre o motivo de as igrejas estarem vazias, sem nem sequer ir até lá para saber se estão vazias, ou quais estão vazias. Suas sugestões são mais enfadonhas e ociosas que o mais insípido cura de uma farsa em três atos e nos levam a confortá-lo seguindo o estilo do cura de Bab Ballads, de W. S. Gilbert: “Sua cabeça não é vazia como a de Hopley Porter”. Assim podemos realmente dizer ao mais insignificante membro do clero: “Sua cabeça não é tão vazia como a do Leigo indignado, ou da Pessoa simples, ou do Homem da rua, ou de qualquer um dos críticos dos jornais; pois eles não têm a mais vaga noção do que querem, sem falar no que lhes deveríamos dar”. De repente eles se viram e insultam a Igreja por ela não ter impedido a Guerra que eles mesmos não quiseram impedir, e que ninguém jamais professara ser capaz de impedir, com exceção de alguns membros daquela mesma escola de céticos progressistas e cosmopolitas que são os principais inimigos da Igreja. Foi o mundo anticlerical e agnóstico que profetizou o advento da paz universal; é esse mundo que se sentiu, ou que deveria ter-se sentido, envergonhado e confuso ante o advento da guerra universal. Quanto à visão geral de que a Igreja ficou desacreditada em virtude da Guerra — eles também poderiam dizer que a Arca ficou desacreditada em virtude do Dilúvio. Quando o mundo vai mal, comprova-se sobretudo que a Igreja está certa. A Igreja se justifica não porque seus filhos não pecam, mas porque pecam. Mas isso marca a disposição deles acerca de toda a tradição religiosa: eles estão num estado de reação contra ela. Tudo está bem com o rapaz quando ele mora na propriedade de seu pai; e tudo está bem com ele quando está longe o suficiente para olhar para trás e ver a propriedade toda. Mas essa gente chegou a um estado intermediário, caiu num valo intermediário de onde não se podem ver nem os montes lá na frente, nem os montes lá atrás. Eles não conseguem sair da penumbra da controvérsia cristã. Não conseguem ser cristãos e não conseguem deixar de ser anticristãos. Toda a atmosfera é de reação: azedume, perversidade, crítica barata. Essa gente ainda vive na sombra da fé e perdeu a luz da fé. Ora, a melhor relação com a nossa casa espiritual é ficar suficientemente perto para amá-la. Mas a segunda melhor relação é ficar suficientemente longe para não odiá-la. A tese destas páginas é que, embora o melhor juiz do cristianismo seja o cristão, o segundo melhor juiz seria alguém mais parecido com um confucionista. O pior de todos os juizes é aquele que está mais preparado com seus julgamentos; o cristão malformado que gradativamente se transforma no agnóstico mal-humorado, preso no meio de uma briga da qual ele nunca entendeu o começo, infestado por uma espécie de tédio hereditário sem saber do quê, e já cansado de ouvir o que ele nunca ouviu. Ele não julga o cristianismo calmamente como faria um confucionista; não o julga como ele julgaria o confucionismo.”39 (Destaques nossos).

Aqui portanto, parecem haver três posicionamentos fundamentais em relação ao Cristianismo: a) Estar “inserido” nele; b) Estar “fora” dele; c) Ou estar numa posição intermediária entre “a” e “b”, a qual, segundo Chesterton, é a posição dominante dos pensadores modernos. Deste modo, a modernidade surge como um fenômeno eclético que mistura aspectos da doutrina cristã com filosofias e modos de agir pagãos, sendo ao mesmo tempo um recuo ao paganismo e um “Cristinanismo anticristão”. Esta caracterização é extremamente paradoxal e, de um certo modo, corresponde ao modo de argumentar tipicamente chestertoniano através de contrastes. Mas isto não responde ao problema, pois como é possível um cristão anticristão? Ou um cristão semi-pagão? Chesterton parece advogar por um Cristianismo num sentido autêntico do termo, lançando mão de argumentos contra a posição ambígua e confusa dos pensadores modernos e o meio de convencê-los de seu Catolicismo morno e indiferente se dá por uma reexposição da história da Igreja de uma perspectiva milenar que a faz ressaltar na história da Humanidade como algo singular e irrepetível. Central para o argumento de Chesterton é que a Igreja é um fato inédito e único na história da humanidade e tal fato só pode ser compreendido em todas as suas dimensões através de um alargamento imaginativo ou de uma ampliação de horizontes intelectuais capaz de demonstrar que entre a Igreja Católica e qualquer outra instituição humana não há propriamente rivalidade mas monopólio. Não há nada que compita com a Igreja, entre ela e o paganismo existe um abismo análogo ao abismo entre o homem e o macaco, de tal modo que todas as “alternativas” à Igreja são modos distintos de compreendê-la de modo equivocado:

“Depois, numa hora de quietude, um estranho pensamento me ocorreu feito um raio. De repente me entrara na cabeça outra explicação. Suponhamos que ouvíssemos muita gente fazendo menções a um desconhecido. Suponhamos que ficássemos intrigados por ouvir alguns dizendo que ele era alto demais; outros, baixo demais. Alguns faziam objeções à sua obesidade; outros lamentavam a sua magreza. Alguns o achavam escuro demais; outros, louro demais. Uma explicação (como já se admitiu) seria que ele fosse uma figura estranha. Mas há outra explicação. Ele poderia ser a figura certa. Homens exageradamente altos poderiam achá-lo baixo. Homens demasiado baixos poderiam achá-lo alto. Velhos machões a caminho da corpulência poderiam considerá-lo fisicamente mal fornido; velhos janotas a caminho da fraqueza poderiam sentir que ele se encorpara excedendo as linhas minuciosas da elegância. Talvez os suecos (que têm o cabelo amarelo como uma espiga de milho) o chamassem de pardo, ao passo que os negros o consideravam distintamente louro. Talvez, em suma, essa coisa extraordinária seja realmente a coisa ordinária; pelo menos a coisa normal, o centro. Talvez, no fim das contas, o cristianismo fosse sadio e todos os seus críticos fossem loucos — de maneiras variadas.”40

Portanto, para Chesterton, as diversas acusações contra a Igreja na verdade acusam seus próprios acusadores. Se há vários sujeitos caracterizando uma coisa das maneiras mais estranhas possíveis, então ou a coisa em questão é sumamente estranha, ou estranhos são os relatos a respeito dela. Durante muito tempo Chesterton dera credibilidade às acusações populares contra a Igreja Católica, mas a uma certa altura ele percebeu que as acusações é que estavam erradas e não a coisa acusada. A aparente insanidade cristã na verdade denuncia a insanidade de seus críticos, os quais são insanos de modos variados e erram de formas diversas acerca do Catolicismo. Notemos que esta abordagem implica tomar a religião cristã como central para se compreender a realidade e tudo que não pertence à religião cristã está relacionado com ela de modo disperso e fragmentário. Enquanto no Cristianismo reina uma espécie de unidade doutrinária multidimensional, aqueles que não se atentam para este tipo de unidade erram de modos variados acerca da doutrina cristã, pois a sua natureza multifacetada, às vezes contraditória mas ao mesmo tempo coesa, induz os seus adversários a se equivocarem de modos variados acerca dela, daí a dificuldade de se compreendê-la de modo exclusivamente racional. Quando a razão humana é usada como critério absoluto para resolver toda sorte de controvérsias, aí é que o homem moderno ensandece e a Igreja mantém seu equilíbrio, pois o uso exacerbado da razão enlouquece o homem e só a Igreja consegue evitar esta insanidade particularmente moderna:

“Em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento do misterioso e do incalculável. Ele foge aos racionalistas, mas só escapa no último momento. Da grande curvatura da Terra alguém poderia facilmente inferir que cada centímetro dela apresentasse a mesma curva. Pareceria racional que, assim como um ser humano tem um cérebro de ambos os lados, ele devesse ter um coração dos dois lados. Todavia, os cientistas ainda estão organizando expedições para descobrir o Pólo Norte, porque eles gostam tanto de paisagens planas. Os cientistas estão organizando expedições para descobrir o coração do ser humano; e quando tentam descobri-lo, geralmente procuram do lado errado. Ora, a verdadeira percepção ou inspiração é mais bem testada quando se observa se ela detecta essas malformações ou surpresas ocultas. Se o nosso matemático da lua visse dois braços e duas orelhas, ele poderia deduzir as duas omoplatas e as duas metades do cérebro. Mas se ele adivinhasse que o coração do homem estava no lugar certo, então eu deveria chamá-lo de algo mais que um matemático. Ora, essa é exatamente a reivindicação que venho fazendo para o cristianismo. Não simplesmente que ele deduz verdades lógicas, mas que quando de repente se torna ilógico, ele encontrou, por assim dizer, uma verdade ilógica. Ele não apenas acerta em relação às coisas, mas também erra (se assim se pode dizer) exatamente onde as coisas saem erradas. Seu plano se adapta às irregularidades ocultas e espera o inesperado. E simples no que se refere à verdade sutil. Admite que o homem tem duas mãos, mas não admite (embora todos os modernistas lamentem o fato) a dedução óbvia de que tenha dois corações.”41(Destaques nossos)

A intuição de que a modernidade representa uma perda da unidade multidimensional cristã e implica num retorno parcial ao paganismo também aparecerá em outros autores, mas o importante a frisar aqui é que em Chesterton a própria desintegração cristã mantém os valores cristãos só que por outros meios. O termo secularização não é explicitamente empregado pelo intelectual inglês mas a ideia de que a modernidade é fruto de um cristianismo que se desarticulou e mantém os seus valores em outros âmbitos é fundamental. Notemos que Chesterton não afirma que o homem moderno está fora do Catolicismo, pois a modernidade em muitos aspectos se alimenta de ideais e valores cristãos, apenas está inconsciente disto porque não enxerga o fato de que os valores que defende assim como os que combate possuem um passado comum no Catolicismo. A humildade e a caridade são virtudes cristãs, mas quando separadas os homens outrora cristãos se dividem entre ativistas sociais orgulhosos e egoístas tímidos demais para reconhecerem suas próprias virtudes42. Em ambos os casos o erro não está na ausência de virtude, mas na incapacidade de articular várias delas ao mesmo tempo e de modo coeso. O homem moderno padece da incapacidade de enxergar a realidade de modo suficientemente amplo e simultaneamente unitário, tal como ocorria no Medievo católico, razão pela qual precisa ora elogiar o Catolicismo pelas suas obras de caridade social, ora criticá-lo pelo seu “rigorismo dogmático”. A religião católica é um sistema doutrinário, litúrgico e moral extremamente “amplo” e espaçoso, capaz de agregar em si dominicanos e franciscanos, beneditinos e carmelitas, místicos de origem plebeia e teólogos de origem nobre, e é esta elasticidade sobrenatural (pois a única explicação para os paradoxos do Cristianismo é a sua origem divina) para congregar todos os tipos humanos no mesmo seio dogmático do depositum fidei é que confere ao Catolicismo a sua inapelável superioridade espiritual frente ao provinciano e parcial racionalismo moderno. O racionalismo moderno levou o homem a absurdos insustentáveis, isto é, a uma forma de insanidade obcecada por explicações exclusivamente racionais e humanas, porém, a razão só funciona de modo são quando se submete à Fé, este é o ensino sensacional e original do Magistério da Igreja, ensino este ao qual deveríamos retornar ao invés de nos precipitarmos no abismo de uma razão que se tornou insana sem a luz da fé.

Se, contudo, atentarmos para o modo de argumentação chestertoniano veremos que sua censura ao racionalismo moderno possui um traço de briga entre irmãos: os racionalistas modernos são cristãos secularizados, isto é, perderam a fé mas sobrevivem fisiologicamente dela. Ninguém acredita mais no céu mas é preciso que as massas plebeias continuem acreditando pois esta ilusão coletiva mantém níveis mínimos de civilidade e, consequentemente, podem auxiliar no progresso “humanitário”. O que os modernos conservam de cristão é o seu cultivo da razão, contudo, sem a direção das luzes da fé e da religião católica, pois a religião passou a ser considerada assunto privado e não público. A esfera pública é a esfera da razão, porém, de uma razão sem piedade, sem vida espiritual, sem dogmas religiosos a serem defendidos. Chesterton reivindica, portanto, uma razão não insana, uma razão que se deixa esclarecer pelas luzes obscuras da fé, as quais são as únicas que podem manter a sanidade espiritual do homem: o homem moderno erra por querer voar apenas com uma asa, a asa da razão amputando parcialmente a asa da fé. Notemos que esta abordagem leva à paradoxal situação de católicos sem fé que defendem a religiosidade apenas como modo de vida privado, o que é uma contradição em termos: Como a modernidade pode ser um Cristianismo sem Fé? Como é possível ser religioso sem aderir a dogmas religiosos? Se a modernidade é um abandono da moral e dos dogmas cristãos, mas ao mesmo tempo pretende manter a noção de “salvação da humanidade” não mais sob a forma católica, mas agora sob a forma racionalista do “progresso histórico” é difícil não concluir que a modernidade é um abandono do Cristianismo (ou seja, uma Apostasia) e não sua continuação racionalista, emancipada ou “desencantada”. Seria mais apropriado dizer que a modernidade se apoia em alguns aspectos da moral cristã por mera conveniência conservadora, mas não por que ainda seja cristã e sim porque pretende ser uma nova forma cultural destinada a suplantar o catolicismo em níveis mundiais, ou como diria Calderón, pretende ser uma “religião do homem”: a culminância de um processo revolucionário anticristão.43 Portanto, devemos seguir outra direção se quisermos entender as relações entre a modernidade e o Cristianismo. 44

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