Como se tornar uma pessoa culta

F. Pereira
11 min readMay 3, 2020

Estou terminando de catalogar minha biblioteca pessoal composta por livros digitais e físicos no site Skoob (books ao contrário). Até agora consegui listar 321 obras, sendo 99 já lidas, 10 estou lendo e 213 estão marcadas para serem estudadas ainda[1]. O algoritmo do site possui um “paginômetro” que contabiliza o número de páginas lidas e, segundo os cálculos mais atualizados, já li aproximadamente 25.355 páginas o que equivale a aproximadamente 25 Bíblias se supusermos que cada exemplar da Bíblia possui em média 1.000 páginas. Ainda não terminei de catalogar todos os livros que possuo e/ou que pretendo ler e, além disto, não salvei diversas revistas, quadrinhos e livros infantis que li muitos anos atrás, pois simplesmente não possuo mais as obras comigo e não faço a mínima ideia de como reencontrá-las para fins de arquivo. Algumas coisas simplesmente não me lembro, mas de qualquer modo consegui catalogar ainda cerca de 35 revistas Recreio que li quando era criança, as quais totalizam cerca de 1459 páginas.

Gostei muito da proposta do site, é como se fosse um facebook para leitores, porém, estou muito mais preocupado em reunir todas as obras que possuo e organizar um plano de estudos de longo prazo, algo que estava tendo dificuldade de realizar utilizando apenas os arquivos de Excel. Infelizmente muitos livros que possuo ainda não foram cadastrados na plataforma, seja porque as edições que possuo são muito antigas e desconhecidas, seja porque são de autores pouco conhecidos do grande público e até de alguns públicos especializados. Imagino, entretanto, que é apenas questão de tempo para que os títulos sejam cadastrados e contabilizados. O que mais me agrada é a ideia de poder fazer uma organização quantitativa dos livros lidos, dos que pretendo ler, dos que estou lendo, classificar os favoritos, escrever resenhas ou fazer vídeos falando dos mesmos, estabelecer metas de leitura e inclusive informar quantas páginas já foram lidas e armazenar informações de quando exatamente se terminou de ler uma obra. Isto será de muito auxílio.

Em razão das facilidades e ferramentas acima descritas veio-me à mente um pensamento um tanto quanto curioso: qualquer pessoa pode chegar a consumir uma biblioteca inteira durante a vida desde que consiga organizar as próprias leituras. Por exemplo, suponhamos que um jovem de 18 anos adquira o hábito de ler pelo menos 2 livros por mês, quando ele fizer 68 anos de idade já terá lido 1200 livros. Essa quantia equivale a uma pequena biblioteca e, apesar de parecer um número absurdo para apenas um indivíduo, é algo plenamente factível e não estou contabilizando as diversas páginas de Internet que a pessoa lerá até o fim da vida, desde notícias jornalísticas, revistas, posts opinativos de blogs, resenhas de livros, quadrinhos, etc. Se reunirmos todos os clássicos da literatura ocidental, talvez o número seja bem inferior a este, ou seja, dá para adquirir uma cultura e uma erudição abrangente sobre as nossas civilizações apenas estabelecendo um plano de leituras de longo prazo que abranja os clássicos e comporte uma meta de leitura anual relativamente modesta de apenas 24 livros. Convenhamos, qualquer pessoa minimamente alfabetizada consegue ler 02 livros por mês.

Quando digo “clássicos do Ocidente” obviamente me refiro à Bíblia, à literatura greco-romana aí inclusos pelo menos mas não exaustivamente Homero, Platão, Aristóteles, Plutarco, Hesíodo, Aristófanes, Sófocles, Ésquilo, Virgílio, Heródoto, Tucídides, Marco Aurélio, Epicuro, Epicteto, Quintiliano e Cícero, à literatura especificamente cristã incluindo todos os principais autores da patrística (Santo Agostinho, Boécio, São Gregório, Santo Atanásio, etc.,) e todos os principais da escolástica (Santo Tomás de Aquino, São Bernardo de Claraval, Santo Anselmo, São Boaventura, etc.,), depois os escritores do fim do Medievo e início da Renascença e adiante, tais como Dante Alighieri, Erasmo de Roterdã, São Thomas Morus, Descartes, Pascal, etc. A partir da Reforma Protestante e da formação dos Estados nacionais, a pessoa pode escolher concatenar o estudo dos clássicos da literatura do próprio vernáculo com os clássicos da literatura de outros idiomas tais como Luís de Camões e Pe. Antônio Vieira para a língua portuguesa, Shakespeare e Milton para a língua inglesa, Cervantes para a espanhola, Bossuet para a francesa, Dostoiévski para o russo, Goethe para a alemã e assim sucessivamente até os dias atuais. É claro que à esta altura o indivíduo provavelmente já definiu um gosto literário específico e elegeu um autor predileto como Fernando Pessoa ou Dostoiévski e passe a estudar as obras completas desses escritores prediletos. Não creio que isto seja ruim, pelo contrário, é nesse momento que o senso crítico e a visão sinóptica para a diversidade dos estilos começa a se desenvolver e, então, a pessoa conseguirá aos poucos identificar quais são os elementos comuns aos bons e aos maus autores e saberá distinguir, ainda que de maneira puramente instintiva, os melhores escritores dos meramente medíocres.

Não diria que é absolutamente essencial ler as obras completas de todos os autores elencados acima com exceção dos clássicos greco-romanos e da própria Bíblia pois a extensão dessas obras clássicas se comparada com a produção literária posterior não é tão grande, portanto, é algo que é possível assimilar em alguns anos[2]. Ademais, os clássicos possuem como que em potência todos os arquétipos que foram desenvolvidos na literatura posterior. Quem leu a Ilíada sabe que a força de Superman e sua aparente invulnerabilidade[3] é inspirada na força da personagem Aquiles, enquanto seu senso de justiça e honra, por exemplo, inspira-se nas mesmas virtudes apresentadas por Heitor. Aquiles e Heitor são as principais personagens da Ilíada, portanto não é gratuito que a figura mais popular dos quadrinhos resulta de uma fusão das virtudes morais e físicas dos maiores heróis da guerra de Troia. Como diria Northop Frye todo entretenimento contemporâneo já está previsto e presente na literatura clássica[4], portanto, assimilá-la é absorver várias possibilidades de visões de mundo e modos de vida sob a forma de antecipação imaginativa. Isto desenvolverá no indivíduo a capacidade de discernir as coisas com certo grau de diferenciação, especificidade e equilíbrio, com certa fineza intelectual, por assim dizer, ao invés de sair por aí reproduzindo ideias prontas de gurus midiáticos.

Depois, creio que fica a critério de cada um assimilar ou não as obras completas dos autores que considera prediletos ou favoritos, os quais servirão como que de base para uma compreensão e apreciação de mundo a partir de um ângulo de visão específico, mas que não é arbitrário, afinal, o indivíduo já assimilou uma enorme pluralidade de visões de mundo possíveis a partir dos clássicos da literatura e, embora possa vir a defender valores determinados, será capaz de apreciar ideias e valores alternativos porque possui uma visão comparativa e abrangente das coisas, já assimilou visões alternativas de mundo através da leitura dos clássicos e é capaz de se orientar na realidade e defender os valores e ideias que considera mais apropriados depois de já ter adquirido uma bagagem cultural prévia. É basicamente isto que diferencia um cidadão bem formado de um palpiteiro virtual que simplesmente reage emocionalmente aos títulos sensacionalistas da mídia e se habitua a dividir o mundo em dois lados: o seu, que normalmente é o lado ignorante da força, e de todos os demais que são categorizados indiferenciadamente como inimigos ideológicos e, portanto, analfabetos funcionais a priori independentemente do que façam ou digam.

A aquisição da literatura clássica me parece fundamental, mas não sejamos ingênuos: vivemos numa época de extensa difusão de informações e qualquer pessoa pode perfeitamente (e é até razoável que se faça isso) articular a leitura dos clássicos com o consumo de seriados, filmes, quadrinhos, podcasts, jogos de videogame,[5] blogs e vídeos opinativos, educativos, ou de cultura geral contemporâneos, tudo isto ao mesmo tempo. Essa é uma das grandes vantagens da nossa época, desde que tenhamos método podemos adquirir informações e conhecimentos sobre praticamente qualquer coisa e isto está acessível para a grande maioria das pessoas. A assimilação dos clássicos articulada com um consumo moderado de produções culturais contemporâneas saberá situar a pessoa na ordem geral das coisas e permitirá que ela consiga fazer associações entre o que aprendeu na literatura clássica e o que é produzido recentemente, criando um senso de ordem e continuidade histórica, tal como exemplifiquei através de Superman, Aquiles e Heitor. Outro exemplo: de acordo com Sócrates (ou o Sócrates tal como retratado por Platão) a origem do termo herói deriva do fato de que os mesmos eram fruto das relações eróticas entre os deuses e os mortais[6], por isso que eram tratados como semideuses ou literalmente “quase deuses”. Essa maneira de retratar os heróis como figuras intermediárias entre o humano e o divino é retomada por exemplo no filme “O Homem de Aço” do diretor Zack Snyder, o qual nunca escondeu sua compreensão de que as estórias dos heróis em quadrinhos representam uma espécie de “mitologia” das sociedades modernas. Mas estas associações não estão presentes apenas em filmes de heróis. No filme “O Regresso”, protagonizado por Leonardo Dicaprio, o diretor parte de um arquétipo literário pra lá de tradicional, que é o arquétipo do “retorno ao lar”, presente por exemplo em toda a “Odisseia” de Homero, que retrata justamente o retorno de Odisseu à sua cidade natal, Ítaca. A personagem de Dicaprio, assim como Odisseu, precisa enfrentar uma série de obstáculos para conseguir retornar a um local seguro e há momentos no filme em que se tem a sensação de que ele não conseguirá “chegar lá”, exatamente como no épico poema grego. No seriado “WestWorld”, como já cheguei a escrever tempos atrás, quem leu “O discurso do método” de Rene Descartes entenderá todo o questionamento filosófico presente no seriado sobre como é possível o ser humano discernir entre aparência e realidade. O próprio seriado faz muitas referências a vários outros clássicos da literatura, da pintura e da filosofia, como “Alice no País das Maravilhas”, “O Homem Vitruviano” de Leonardo Da Vinci (que provavelmente foi o primeiro a conceber a ideia de um robô), a navalha de Occam, etc. Nem preciso comentar que toda a obra de Tolkien possui óbvias referências ao universo simbólico medieval, além de tentar retratar alguns valores cristãos através de sua literatura.

Até aqui falamos basicamente de cultura literária, entretanto, é necessário algo mais. Para ter uma visão de conjunto abrangente sobre a realidade também é necessário ler alguns livros de história, desde as civilizações mais antigas até as obras de referência sobre a história nacional. Com relação a este campo específico não tenho nenhuma sugestão específica para fazer, existem ótimos historiadores de civilizações antigas e modernas e o critério para eleger qual obra a pessoa escolherá para estudar pode ficar a critério dela mesma, desde que siga autoridades específicas da área[7]. Para não passar em branco sugeriria Fustel de Collanges e o seu clássico “Cidade Antiga” para entender a dinâmica das sociedades tradicionais, Jacques Le Goff, Regine Pernoud e March Bloch e suas diversas obras muito esclarecedoras sobre a Idade Média, e finalmente Pedro Calmon Viana, Otávio Tarquínio de Sousa, Antônio Paim, José Camilo de Oliveira Torres e Gustavo Barroso (injustamente esquecido) para a história nacional. Para complemento da literatura da história nacional também sugeriria alguns clássicos da política, do direito, da economia e da sociologia nacional, tais como os já populares “Raízes do Brasil” do Sérgio Buarque de Holanda, “Casagrande & Senzala” de Gylberto Freire, “Os donos do poder” de Raymundo Faoro, “A consciência conservadora no Brasil” de Paulo Mercadante, “História das Instituições Políticas no Brasil” de Oliveira Viana, “O Dinossauro” de J.O de Meira Penna, “Dois Amores, Duas Cidades” de Gustavo Corção, “História das Instituições do Direito Público Brasileiro”, “Da representação Política” e “O Estado Tecnocrático” (Simplesmente magistral!) de José Pedro Galvão de Sousa. O interessante de se adquirir conhecimento histórico é que a pessoa adquire concomitantemente conhecimentos acerca das diversas formas de organização política, econômica e jurídica das sociedades e, portanto, uma visão sinóptica dessas outras disciplinas.

Com a aquisição de cultura literária e histórica também creio necessário adquirir um mínimo de treinamento intelectual voltado à aquisição de ferramentas lógicas e retóricas para que o indivíduo possa aprender a estruturar argumentos e saber defender determinadas ideias com a eficiência e a objetividade necessária ao invés de sair por aí simplesmente xingando raivosamente no ambiente virtual pessoas que pensam de maneira diferente. Neste assunto há boas referências já consolidadas, tais como as obras lógicas de Aristóteles (seu famoso Órganon), “Isagoge” de Porfírio, “Umbralles de La Filosofía” do Pe. Álvaro Calderón, notadamente a introdução geral e o estudo introdutório à lógica, “O Trivium” da Irmã Miriam Joseph, “Lógica Informal” de Douglas Walton, “Introdução à Lógica” de Cézar Mortari, “O desenvolvimento da lógica” de William Kneale e Martha Kneale e “O sentido da nova lógica” de William Von Orman Quine. Essas últimas obras servem mais para se ter uma visão panorâmica da história da lógica, desde a sua fundação por Aristóteles até os aportes teóricos mais recentes levados à cabo por Gottlob Frege que “fundiu” a lógica com a matemática. Para quem quiser um aprofundamento e uma abordagem atual acerca dos diversos tipos de discursos voltados para a persuasão racional, o “Tratado da Argumentação” de Chaïm Perelman é excelente.

Por fim, mas não menos importante, existem alguns livros que elencam um conjunto de princípios e regras gerais para que a pessoa possa ter uma orientação nos estudos e saiba ordená-los conforme seus interesses, o que é de ótima valia. “A Vida Intelectual” do Pe. Sertillange, “Como ler livros” de Mortimer Adler, “O Critério” de Jaime Balmes, “Aprendendo inteligência” de Pierluizi Piazzi [8] são alguns exemplos. A distinção entre “leitura para se informar” e “leitura para entender” feita por Adler é muito útil, afinal há textos e textos, com as mais diversas finalidades. A importância da leitura para o desenvolvimento da inteligência também é frequentemente ressaltada pelo professor Pier. Caso o objetivo seja ter um livro que sirva de referência bibliográfica para vários outros, considero “História da Literatura Ocidental” de Otto Maria Carpaeux um ótimo livro-base para esta finalidade. Cultura literária mais cultura histórica mais ferramentas do discurso lógico mais as obras próprias da profissão que o indivíduo exerce são suficientes para que no longo prazo ele possa desenvolver uma compreensão abrangente da realidade e se posicionar com equilíbrio intelectual acerca das mais diversas questões. Como demonstrei parágrafos acima não é necessário um esforço exageradamente hercúleo, pois lendo apenas 2 livros por mês a pessoa já terá consumido uma pequena biblioteca depois de algumas décadas, basta organização e disciplina para isto. Notem que insisto na perspectiva de longo prazo, de décadas de estudos, em oposição ao imediatismo que já se tornou febril em nossa geração, pois não podemos confundir consumo de informação[9] com formação cultural: o primeiro é algo que qualquer um pode fazer de modo imediato, mas formação cultural é um projeto de longo prazo que se confunde com o desenvolvimento do caráter e da personalidade do indivíduo, portanto é algo que sempre implica uma consciência histórico-biográfica, cada um vai integrar os feitos culturais do passado e do presente à própria biografia de maneira muito particular e única, apenas desta maneira que se obtém orientação na realidade em típicos tempos de desorientação social e política como os atuais. Ao fim e ao cabo cultura e ignorância é uma questão de escolha, cabe a nós questionar por qual delas iremos optar.

[1] Estes números estão sendo atualizados diariamente, contudo o mais importante é desenvolver o hábito e o gosto da leitura, pois os efeitos em nossa inteligência são infindos, veja por exemplo a entrevista do professor Pier neste sentido: https://www.youtube.com/watch?v=aQLa252eMqg&list=PLfU-K9phat72gEnAvfpVKHRNzZzVda8lk&index=3&t=0s. A dica que ele dá de começar com um livro pelo qual o indivíduo se interessa me parece uma grande sacada.

[2] Isto naturalmente depende do ritmo de cada um, mas eu estimo que de 3 a 5 anos seja suficiente.

[3] A criptonita está para o Superman como o calcanhar está para Aquiles.

[4] Frye, Northop. “A imaginação educada”, Campinas, SP: Vide Editorial, 2017.

[5] Um dos meus melhores amigos aprendeu inglês sozinho, apenas jogando videogame. Hoje ele é poliglota e professor particular de inglês. Os jogos de videogames não são ruins, desde que saibamos utilizá-los.

[6] Platão, Crátilo. São Paulo: Paulus, 2014, pg. 45.

[7] Definitivamente não sugeriria obras revisionistas sem que antes a pessoa esteja familiarizada com o status questiones presente no mainstream acadêmico, pois seria irresponsável. Ademais, não se pode rever uma literatura sem antes se apropriar dela. Para reflexões metodológicas e teóricas sobre a dinâmica dos acontecimentos históricos sugeriria as obras de Christopher Dawson e Arnold Toynbee, a princípio.

[8] Este livro mudou minha vida! Recomendo que se comece por ele, pois indica a forma correta de estudar baseando-se em pesquisas neuro-pedagógicas mais recentes.

[9] Consumo irracional de informações sem critério nem método não gera conhecimento.

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