Comentários sobre Spinoza

F. Pereira
3 min readMar 8, 2024

Um metafísico é um arquiteto de ontologias? Ou um recenseador das generalidades? Segundo Spinoza, a natureza é sempre a mesma, suas leis e regras se comportam exatamente da mesma forma em todos os lugares, logo, não faria sentido falar em defeito na natureza uma vez que ela é por definição imutável. Isto faz sentido, sobretudo se considerarmos que toda defecção implica a alteração de um estado de coisas “bom” para um “ruim”. Todo defeito é uma queda do ser, uma atrofiamento, uma perturbação no modo “natural” das coisas se comportarem habitualmente. Um defeito é uma distensão da regularidade, porém, se estamos a falar de uma regularidade inquebrantável, não faz sentido referir-se a esta regularidade como defeituosa. Mas Spinoza está sendo lacônico, pois o que ele quer dizer com “a natureza é imutável”? A natureza entendida como a totalidade dos entes, como reunião de viventes e não-viventes não é precisamente um perpétuo devir, uma constante mutação? Com efeito, nascemos, crescemos e morremos e a Terra continua as suas rotações em torno do sol diariamente, isso não seria indicação da mudança constante das coisas? Mesmo dias comuns podem nos surpreender e revelarem-se inesperadamente trágicos. Como entender a imutabilidade da natureza então? A ideia de regularidade na natureza surge justamente da percepção de que o devir constante das coisas é derivado de “leis” ou “regras” que expressam um certo padrão de comportamento dos fenômenos naturais. O filósofo holandês está trabalhando com o conceito moderno de leis naturais entendidas como regularidades descritivas do comportamento dos fenômenos. Desta forma, os fenômenos naturais estão regidos por certos padrões de mudança intelectualmente perceptíveis e traduzíveis em fórmulas descritivas.

Como entender as leis naturais então? Estas fórmulas descritivas dos padrões de comportamento dos fenômenos naturais? Estas fórmulas são expressões de verdades absolutas e, portanto, imutáveis? Este é justamente o problema da afirmação de que a “natureza é imutável”. Como interpretar uma proposição desta? Se tudo que existe no universo se comporta de uma maneira regular e, portanto, previsível, então parece que somos forçados a concluir que o livre-arbítrio não existe, ou pelo menos, não existe na versão popular em que é formulado, ou seja, como capacidade de agência pessoal para decidir sobre o rumo dos acontecimentos da própria vida. Raciocinando de maneira “spinoziana”, se a natureza é imutável e o ser humano é parte da natureza, logo, o comportamento humano também é “imutável”, no sentido de poder ser descrito por “leis da natureza” ou fórmulas gerais. Qual é contudo, o conteúdo destas fórmulas gerais, destas leis que regem as paixões e ações humanas?

Spinoza desenvolve uma crítica à compreensão tradicional segundo a qual o papel da Ética seria desenvolver uma visão idealizada da natureza humana ao invés de entendê-la como verdadeiramente é. Segundo o filósofo holandês, a natureza humana é tão “imutável’’ e regida por leis fixas como o movimento dos astros e, seria papel do filósofo moral apenas descrever o comportamento humano nos termos destas “leis naturais imutáveis”. O argumento de Spinoza é de que não é papel da Ética nos dizer como “devemos” nos comportar no sentido de quais virtudes precisaríamos desenvolver para nos tornarmos uma versão melhorada de nós mesmos, pois o comportamento humano, assim como qualquer outro fenômeno da natureza, está fadado a certas regularidades, a certos vícios e virtudes que não são alteráveis por pregação moral, doutrinas religiosas ou projetos políticos de poder, ou discursos de coaching, para utilizarmos uma linguagem moderna. O problema com o argumento spinoziano é óbvio, qual seja, se a natureza e o comportamento humanos são regidos por leis inalteráveis, então a liberdade no sentido tradicional não é possível, ou seja, a capacidade para decidir entre uma coisa e outra será na verdade um produto das nossas próprias inclinações naturais, as quais são inalteráveis por nós mesmos. Nós só escolheríamos as coisas para as quais já estávamos previamente inclinados e não há nada que podemos fazer para evitar que as coisas sejam de outro modo. Se o comportamento humano é regido por leis inalteráveis, tudo que podemos fazer é detectá-las, descrevê-las e aceitar nossa incapacidade para mudança.

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