A raiz liberal da modernidade

F. Pereira
10 min readMar 23, 2020
  1. O pensamento liberal na modernidade

Vimos até aqui as dificuldades de se caracterizar a modernidade como um neopaganismo, mas por outro lado, como deveríamos caracterizá-la? Esboçamos uma definição provisória ao falar de Apostasia, o que nos força a seguirmos uma fundamentação diferente da chestertoniana, para isso, entretanto, deveremos seguir as pegadas de um bispo francês que abordou o assunto de um modo exemplar: Mons. Marcel Lefebvre. Em sua obra do “Do Liberalismo à Apostasia” ele resume os passos teológicos e filosóficos que foram dados pelas civilizações europeias em direção à modernidade. Longe do que pode parecer à primeira vista, o liberalismo não se reduz tão somente a uma doutrina econômica sobre o modo de funcionamento dos mercados capitalistas, antes, corresponde a uma nova doutrina da realidade que pretende erigir o conceito de liberdade humana como fundamental, mas desvinculando-o de suas raízes cristãs. Com efeito, ao falar da crise atual da Igreja a qual fora agravada pelo Concílio Vaticano II, Mons. Lefebvre, seguindo a doutrina dos papas pré-conciliares aponta o naturalismo renascentista e o protestantismo como raízes do liberalismo atual que domina a hierarquia eclesiástica. A ideologia liberal surge com a Revolução Francesa através da atuação secreta da rede de lojas maçônicas que, com sua organização internacional passou a agir de modo a denegrir a imagem da Igreja e a insuflar em nações cristãs ideias contrárias à doutrina bimilenar do Magistério. Assim, os teóricos do liberalismo apregoavam que a liberdade é a possibilidade de agir como se quiser, de modo independente e sem subordinação a autoridades, o que contraria o ensino tradicional da Igreja de que a liberdade consiste no bom uso do livre-arbítrio e, portanto, livre é aquele que submete para o próprio bem e de acordo com a verdade às autoridades naturais e sobrenaturais. Como consequência desta distorção do conceito cristão de liberdade surgirá nos espíritos um doutrina revolucionária e antropocêntrica pois se a liberdade consiste na possibilidade de auto-governo independente (ou autônomo), então não há motivos para que os homens se vejam obrigados a se comportar de acordo com as normas sociais e jurídicas vigentes: se posso governar a mim mesmo por que me submeter a outro homem? De igual maneira, se cada indivíduo humano é a sua própria fonte de normatividade, então obedecer deixa de ser uma virtude e passa a ser vista como uma postura passiva e irracional. Assim, a relação com as autoridades humanas se torna problemática, pois toda forma de imposição de obrigações mesmo que feita para o bem, passa a ser vista como mera arbitrariedade ou capricho. Mas para os liberais a doutrina não se detém aí, nas relações humanas, como também avança para a esfera religiosa: a dignidade humana consiste na ampliação da liberdade e ser livre é poder guiar a si mesmo na existência de acordo com suas próprias convicções e razões. Ora, mas se assim é, se o homem por meio da sua liberdade é autossuficiente, então Deus torna-se prescindível. Não há motivos para obedecer nem a Deus nem aos homens e cada qual possui o direito de acreditar e viver como lhe apraz. As consequências sociopolíticas da doutrina liberal vieram com a Revolução Francesa e todas as revoluções posteriores, pois de repente a humanidade julgou prescindir das ordens sociais vigentes e se colocou na condição de inventar utopias que correspondessem aos anseios de liberdade. Essa caracterização do liberalismo enquanto doutrina revolucionária da realidade pode ser vista em vários autores, principalmente franceses, afinal são diretamente interessados no tema.[1] Monsenhor Lefebvre segue a argumentação do também teólogo francês, o Pe. Augustin Roussel, segundo o qual o liberal é um fanático pela independência: independência da inteligência em relação ao seu objeto e em relação à vontade, independência da consciência individual em relação à lei natural, independência do indivíduo em relação aos corpos sociais dos quais depende e com os quais se desenvolve, independência do Estado em relação à religião (laicismo), do presente em relação ao passado (progressismo modernista) e da razão em relação às paixões (romantismo). Todas estas exposições são baseadas nas encíclicas papais “Pascendi”, “Rerum Novarum”, “Mirari vos” , “Syllabus”, etc., e ambos os autores demonstram as várias condenações papais contra esses erros surgidos e gestados pela ideologia liberal. É importante notar aqui uma certa semelhança com a argumentação chestortoniana pois o intelectual inglês classifica os pensadores modernos como racionalistas desintegristas, isto é, sujeitos que adotaram filosofias fragmentárias da realidade e exclusivamente baseadas na razão humana, o que segundo a terminologia empregada pelos papas das encíclicas citadas acima caracteriza um “naturalismo racionalista”. O naturalismo consiste na negação do sobrenatural e pretende fincar a filosofia apenas nos esforços naturais da razão humana, ignorando completamente os dogmas revelados, os milagres etc.. A semelhança com a argumentação chestertoniana se revela também pelo fato de que os pensadores liberais que inauguraram a modernidade realizaram uma série de “recortes” ou desintegrações de aspectos da realidade que a Igreja Católica sempre mantivera e considerara como unidos, daí porque são denominados “fanáticos pela independência”. De fato, o conceito de Revolução ou rompimento humano com as ordens já estabelecidas surge com a ideologia liberal e não encontra precedentes na história. Na verdade, Mons. Lefebvre aponta Lutero e Descartes como protótipos dos intelectuais liberais, pois ambos se “rebelaram” contra tradições vigentes, uma religiosa e outra filosófica, para inventarem um novo modo de se relacionar com Deus ou se pensar a realidade. Em ambos os casos existe uma tendência de se buscar algo novo ao invés de se acolher o que já é oferecido por uma tradição e, além disso, o critério para mudança parte do sujeito e não de uma necessidade natural da ordem das coisas. Aqui Mons. Lefebvre já enxerga as raízes do pensamento liberal e dos autores modernos em geral: subjetivismo e evolução “revolucionária”. A partir de Lutero e Descartes e depois deles em todos os autores liberais a preocupação essencial do homem não deve ser conhecer a realidade e se submeter à ela mas transformá-la para que se adeque às próprias paixões e interesses. A tendência ao mobilismo e ao progressismo tornam-se a tônica das civilizações modernas, porque concomitantemente ao cogito cartesiano surgem as grandes navegações e o mundo agora não existe para ser contemplado para se dar glórias a Deus, mas para ser explorado e instrumentalizado para os interesses humanos. O pensamento liberal, portanto, além de promover uma série de divisões e desarticulações de elementos que outrora encontravam-se unidos e ordenados natural e sobrenaturalmente pela Igreja Católica, empreende também um giro humanista e antropocêntrico e trata o passado como objeto de críticas revisionistas e o futuro como campo de exploração para novos objetivos. O rompimento com ordens tradicionais torna-se uma conditio sine qua nom do pensamento liberal que é desde as suas origens revolucionário por natureza: a meta do homem não é encontrar o seu lugar no cosmos e restringir-se a ele, mas inventar subjetiva e revolucionariamente sua própria realidade em conformidade com sua imaginação, paixões e razão naturalista.

Aqui, portanto, segundo o ensino dos papas e a argumentação de Mons. Lefebvre e do Pe. Roussel não é possível pensar os autores modernos como “cristãos secularizados” como imaginava Chesterton, pois a fundação da modernidade a partir de suas raízes liberais a coloca em franca oposição com o Cristianismo, não podendo haver conciliação entre ambos. A figura dos “católicos liberais” tão veementemente condenada pelos papas e pelos autores em tela padece de uma ambiguidade insustentável, pois tenta conciliar uma doutrina revolucionária e anticristã com a doutrina da Igreja. A ambiguidade que Chesterton notara nos intelectuais de seu tempo nada mais é do que a contradição de um “catolicismo liberal”. Como a religião cristã é exclusiva não se pode estar “dentro e fora” dela ao mesmo tempo, ou se é cristão ou não é: não existe condição intermediária. Ou se defende o catecismo e vive-se de acordo como ele ou então o “catolicismo liberal” é uma perversão do magistério da Igreja, logo, uma heresia que deve ser denunciada e rechaçada. O que resta de correto na crítica de Chesterton, por outro lado, é a observação de que os autores modernos incidiram num naturalismo racionalista que levou-os à insanidade: o culto à razão é uma idolatria insana. De igual modo, este mesmo naturalismo promoveu uma compreensão fragmentária da realidade, separando o homem de Deus, o indivíduo da sociedade, a sociedade de Cristo, a razão da fé e assim sucessivamente. Neste sentido a modernidade é centrífuga e não possui a pretensão de se ancorar numa tradição estabelecida para se desenvolver. A sua meta é expandir “progressivamente” as liberdades individuais (subjetivismo) indefinidamente em todos os setores e áreas. Não é à toa que a economia de livre mercado se tornou a sua principal força motriz sócio-econômica, pois embora os recursos sejam escassos os mercados (desejos e necessidades humanas) são potencialmente infinitos. Ao invés de se educar moralmente as famílias e os indivíduos para se contentarem com o suficiente, fomenta-se idealizações, utopias e desejos insaciáveis promovendo o mobilismo exacerbado típico das civilizações modernas e a busca desenfreada pelo consumo. Como o homem moderno não possui um centro fora de si mesmo ele torna-se seu próprio centro e senhor/escravo de sua própria “liberdade” sem direção espiritual. Recuperar a unidade e ordem espiritual do homem que foi esfacelada pelo liberalismo moderno passa a ser a principal tarefa da Igreja nos próximos séculos. Contudo, como ela poderá fazer isto se se comprometeu também com o liberalismo? Ademais, a modernidade, aqui entendida como a ascensão cultural do pensamento liberal, trouxe situações e desafios inéditos para a Igreja, os quais não são facilmente solucionáveis. Entendê-los será nossa próxima tarefa.

2. Liberalismo e história da Igreja

Como ressaltado nos textos anteriores, cada nova geração é formada com os legados culturais do passado, ou seja, a partir de uma tradição vigente, contudo, a recepção de uma tradição e seu enriquecimento a partir de novos contextos tornou-se problemática na modernidade por causa da sua visão liberal da realidade: o passado não é mais objeto de referência, uma fonte de inspiração ou um modelo a ser imitado, antes, o pensamento moderno instrumentalizou todas as épocas históricas e colocou-as a serviço da formação e desenvolvimento do sujeito em seu contexto presente. Desta forma, o passado perde o seu valor normativo e tende naturalmente a ser um obstáculo a ser superado: a meta de desenvolvimento humano é propalar-se para frente, para o âmbito indefinido e aparentemente inesgotável do futuro. Esta visão terá enormes consequências filosóficas, pois a partir de então a filosofia passará a ser vista como atividade racional destinada a revisionismos críticos e históricos, ou seja, o homem, fazendo uso apenas da razão natural não poderá mais se arrogar o direito de alcançar verdades e/ou teorias definitivas, pois os pensadores e filósofos do futuro terão novas e melhores informações sobre a realidade que não estavam disponíveis no presente e, muito provavelmente, elaborarão correções teóricas no acervo intelectual transmitido ao longo dos séculos. No caso do tomismo, por exemplo, toda a cosmologia tradicional baseada no pensamento de Aristóteles é abandonada frente a novas informações e dados sobre os fenômenos físico-químicos, a metafísica perde seu prestígio anterior pois o saber racional do homem está fadado a um “holismo aberto” e nunca definitivo, a lógica aristotélica e a teoria do silogismo são obrigadas a se retrair a casos corriqueiros, sendo que o discurso científico passa a se basear cada vez mais na lógica formal moderna de natureza simbólica cujo escopo de aplicação é muito mais abrangente, as análises sócio-econômicas bem como a filosofia política ganham aportes teóricos e rigor metodológico através do uso de ferramentas empíricas de coleta, processamento, organização e interpretação de dados sobre a sociedade. Toda esta sequência de eventos colocam os católicos tradicionais numa saia justa: se a modernidade é um mero produto da heresia liberal, como ela pôde evoluir cientificamente em tantos campos? Se a modernidade em seu todo é fruto de uma apostasia, como ela pôde, aparentemente, produzir tantos êxitos, na ciência, na tecnologia e na economia? A única maneira de se responder a essas indagações é afirmando que as bases intelectuais da modernidade (o liberalismo subjetivista e evolucionista) são em si mesmas más (heréticas) mas não todas as suas consequências práticas. Com efeito, ao longo da história da Igreja é comum encontrar interpretações de padres e teólogos afirmando que o surgimento de determinadas heresias é algo bom, pois força a Igreja a melhor defender o depositum fidei, o que acarreta um fortalecimento da nossa vida espiritual. As heresias dos cátaros e dos albigenses propiciou o surgimento de grandes homens santos e a devoção ao Santíssimo Rosário, como narra o próprio São Luís de Monfort,[2] era primordialmente um meio de conversão de hereges. Talvez a principal e mais popular devoção à Nossa Senhora não teria surgido se Deus não tivesse permitido o surgimento de hereges. Isso nos coloca na difícil avaliação de que o surgimento da modernidade a partir do liberalismo tenha sido um mal necessário para a Igreja, logo, o que nos caberia seria identificar quais os bens e os ensinamentos a se tirar deste novo desafio histórico da Igreja. O papa emérito Bento XVI colocou a questão de outra forma: a crise atual da Igreja resulta de dois séculos de assimilação de cultura liberal. Eis a questão, a cultura liberal é assimilável pela Igreja? Como uma doutrina herética poderia se acomodar à doutrina cristã? Isto parece obviamente impossível. Por outro lado, se Joseph Ratzinger com esta expressão pretende se referir aos feitos culturais da modernidade (e não a sua doutrina liberal), aí entendidos os avanços tecnológicos, científicos, medicinais e econômicos (na medida em que estes efetivamente ocorreram), então a Igreja estaria numa situação análoga aos seus primeiros séculos em relação ao paganismo, ou seja, na situação de realizar um trabalho de filtro cultural do que havia de bom na literatura, nas artes e na filosofia pagãs, retificando-as e ordenando-as a Cristo. Apenas neste sentido estrito a modernidade é “assimilável” ao Cristianismo, isto é, os seus feitos culturais podem ser ordenados à salvação das almas, mas a sua doutrina liberal é inconciliável com o Magistério bimilenar.

[1] Neste sentido vide obras “Liberalismo é pecado” de Dom Sardá Felix e “Liberalismo e Catolicismo” do Pe. Augustin Roussel.Para a história da influência da maçonaria nas civilizações modernas ver “A Conjuração Anti-Cristã” de Mons. Henry Delassus.

[2] Vide: “A eficácia maravilhosa da devoção ao Santíssimo Rosário” de São Luís de Montfort.

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